Por Domenico Losurdo.*
Apresentação do Boitempo sobre o artigo:
Em um contexto de mobilização internacional em torno do
massacre em Gaza, da proliferação do debate sobre o conflito no Oriente Médio o
Blog da Boitempo recupera um artigo de Domenico Losurdo, publicado
originalmente na revista italiana L’ERNESTO, em 2001. Nele, o historiador
italiano defende a necessidade de a esquerda tomar uma posição em relação ao
sionismo, rejeitando as análises que apontam para a “complexidade” desse
movimento, esquivando-se de emitir um julgamento sobre ele. Traçando um
panorama histórico e conceitual, o autor insiste que a esquerda deve denunciar
o colonialismo sionista e suas práticas racistas, recusando a equiparação entre
anti-sionismo e anti-semitismo.
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Os “escravos enfurecidos” e o sermão da “complexidade”
Em Durban, por ocasião da Conferência internacional sobre
racismo promovida pela ONU, três mil organizações não governamentais
provenientes de todo o mundo condenaram com palavras candentes Israel por causa
da opressão nacional e da discriminação infligidas aos palestinos, da
ferocidade de uma repressão militar que não se detém nem mesmo diante de “atos
de genocídio”.
Mais timidamente agiram as delegações oficiais. A
perseverante cumplicidade da União Européia para com Israel privou o documento
final de muito de sua força. E, contudo, talvez pela primeira vez na história,
o Ocidente capitalista e imperialista foi obrigado de modo tão solene a
sentar-se no banco dos acusados, foi posto com força diante de algumas páginas
de sua história, constantemente recalcadas, que vão do tráfico dos escravos
negros ao martírio do povo palestino. A fuga indecorosa das delegações
norte-americana e israelense selou o ulterior isolamento daqueles que hoje são
os responsáveis de crimes horríveis contra a humanidade e os piores inimigos
dos direitos do homem. Trata-se de um resultado de importância extraordinária.
E, contudo, até mesmo à esquerda não faltaram aqueles que torceram o nariz.
Dando-se ares professorais em relação aos palestinos, convidaram-nos a moderar
o tom: sim, a crítica a Israel pode ser justa, mas por que trazer à discussão o
sionismo e por que acusá-lo até de racismo?
Em seu tempo, Fichte, troçando da leviandade de certos
discursos relativos aos “excessos” da Revolução francesa, exprimiu o seu desprezo
por aqueles que, estando em segurança e continuando a gozar de todas as
comodidades da vida, pretendem pregar a moral aos “escravos enfurecidos” e
decididos a tirar dos ombros a opressão. Não contentes com a lição de moral, os
atuais professores do povo palestino pretendem também dar uma lição de
epistemologia: pôr em acusação o sionismo enquanto tal – eles sentenciam –
significa perder de vista a “complexidade” deste movimento político,
caracterizado pela presença no seu interior de correntes muito diversas entre
si, de direita, de esquerda e até mesmo de uma esquerda de orientação
socialista e revolucionária.
Na realidade, a se seguir de maneira coerente a metodologia
aqui sugerida, não é somente com relação ao sionismo que seremos obrigados a
calar. Em 1915, a intervenção da Itália no primeiro conflito mundial foi por
alguns círculos reivindicada com palavras de ordem explicitamente
expansionistas e imperialistas, por outros como uma contribuição à causa do
triunfo da democracia e da paz a nível mundial. Mas, pelo menos para os
comunistas, não deveria haver dúvidas sobre o fato de que se tratava de uma
guerra imperialista em todos os sentidos, não obstante as boas intenções e a
sinceridade democrática e até mesmo revolucionária dos seguidores do
“intervencionismo democrático”.
Sirvamo-nos de outro exemplo. Não há dúvida de que o
colonialismo em certos casos assumiu um caráter explicitamente exterminador (que se
pense em particular no nazismo, mas também, anteriormente, aos que fizeram os
aborígines australianos e outros grupos étnicos desaparecer da face da terra),
ao passo que outras vezes deteve-se no limiar do genocídio. No fim do século
XIX a expansão colonial do Ocidente na África desenvolveu-se agitando a palavra
de ordem da libertação dos escravos negros, enquanto alguns decênios mais tarde
Hitler promove a colonização da Europa oriental com o objetivo declarado de
obter a massa de escravos de que necessita a “raça dos senhores” arianos. Se o
Terceiro Reich, no curso de sua marcha expansionista, enaltece as virtudes
purificadoras e regeneradoras da guerra, o colonialismo, em certos momentos de
sua história (por ocasião da sanguinária expedição conjunta das grandes
potências para a repressão da revolta dos Boxers na China), não hesitou em se
auto-celebrar por sua contribuição decisiva para a causa da paz perpétua¹.
Seria errado ignorar aqui a “complexidade” do fenômeno
histórico em exame e suas diferenças internas, as quais, contudo, não nos podem
impedir de pronunciar um juízo sobre o colonialismo enquanto tal: mesmo no
caráter múltiplo e matizado das suas manifestações, o colonialismo é sinônimo
de pilhagem e de exploração, e implicou em guerra, em agressão e na imposição
em larga escala de formas de trabalho forçado em dano das populações coloniais,
mesmo quando se declarou movido pelo intento humanitário de promover a
realização da paz perpétua e a abolição da escravidão, e mesmo quando alguns
expoentes políticos ou alguns ideólogos das grandes potências do Ocidente
acreditaram sinceramente em tais boas intenções!
Sionismo e colonialismo
Não escolhi por acaso o exemplo do
colonialismo. Uma pergunta logo se impõe: existe alguma relação entre
sionismo e colonialismo? Não há dúvida de que o sionismo, mesmo na
multiplicidade dos seus componentes, se caracteriza por uma palavra de
ordem inequívoca: “uma terra sem povo para um povo sem terra”! Estamos
em presença da ideologia clássica da tradição colonial, que sempre
considerou res nullius, terra de ninguém, os territórios
conquistados ou cobiçados e sempre teve a tendência a reduzir a uma
grandeza insignificante as populações indígenas. Ademais da ideologia, o
sionismo toma de empréstimo da tradição colonial as práticas de
discriminação e opressão. Bem antes da fundação do Estado de Israel, já
no curso da Segunda Guerra mundial, quando se estabelecem na Palestina
os sionistas programam a deportação dos árabes. “Deve ficar claro que
não há lugar para todos os dois povos neste país”; faz-se necessário
“transferir os árabes para os países confinantes, transferi-los todos”:
inequívoco é o programa enunciado no final de 1940 por um dirigente de
primeiro plano do movimento sionista.
Sobre isso chama a atenção Edward W. Said2;
e se o iminente intelectual palestino devesse resultar suspeito,
tenha-se presente que, em outubro de 1945, Hannah Arendt condena com
veemência os planos – que, no entanto, depois do fim da Segunda Guerra
mundial, se tornaram muito concretos – de “transferência dos árabes da
Palestina para o Iraque”3. Aqui, com um gracioso eufemismo,
fala-se de “transferência” ao invés de deportação. Mas, três anos
depois, Arendt descreve de modo preciso a violência terrorista
desencadeada contra a população árabe. Eis a sorte reservada a Deir
Yassin:
“Esta aldeia isolada e
circundada de território hebraico não tinha participado da guerra e
havia até mesmo proibido o acesso a bandos árabes que queriam utilizar a
aldeia como ponto de apoio. No dia 9 de abril [1948], segundo o New York Times,
bandos terroristas [sionistas] atacam a aldeia, que no decorrer dos
combates não representava nenhum objetivo militar, e matam a maioria da
sua população – 240 homens, mulheres e crianças; deixam uns poucos com
vida para fazê-los desfilar como prisioneiros em Jerusalém”.
Não obstante a indignação da grande
maioria da população judaica, “os terroristas se orgulham do massacre,
tratam de lhe dar ampla publicidade convidando todos os correspondentes
estrangeiros presentes no país para verem os montes de cadáveres e a
devastação generalizada em Deir Yassin”4.
Não há dúvida: nem todos os componentes e
os membros individuais do movimento sionista se comportam dessa
maneira, e seja como for a promover a fundação do Estado de Israel estão
também sionistas com uma longa história de esquerda às costas; mas
nenhum comunista, bem como nenhum democrata, pensaria em justificar o
comportamento da social-democracia alemã, por ocasião do início e no
curso da primeira guerra mundial, com o argumento das grandes lutas
populares conduzidas por esse partido no passado e do prestígio
internacional por esse modo acumulado.
De resto, olhemos mais de perto a
esquerda sionista, fiando-nos ainda na análise e no testemunho de
Arendt. Também ela faz referência ao “movimento nacional judaico
social-revolucionário”, e eis como o caracteriza: trata-se de círculos
certamente empenhados no prosseguimento de experiências coletivistas e
de uma “rigorosa realização da justiça social no interior de seu pequeno
círculo”, mas, quanto ao resto, prontos a apoiar os objetivos
“chauvinistas”. No conjunto estamos em presença de um “conglomerado
absolutamente paradoxal de tentativas radicais e reformas sociais
revolucionárias em política interna, e de métodos antiquados e
totalmente reacionários em política externa, ou seja, no campo das
relações entre judeus e outros povos e nações”5.
No decorrer de sua história, o movimento
comunista sempre se recusou a considerar de esquerda esse
“conglomerado”, taxando-o sempre com o nome de social-chauvinismo. Tão
pouco de esquerda é esse entrelaçamento de expansionismo (em dano dos
povos coloniais) e de espírito comunitário (chamado para cimentar o povo
dominante empenhado numa difícil experiência de guerra), que uma grande
personalidade judaica chega a ver nele até mesmo um dos motivos de
semelhança entre sionismo e nazismo
6.
Sionismo e racismo
Chegamos, assim, ao ponto crucial. Aos hipócritas que se
escandalizam com as acusações de racismo dirigidas ao sionismo, pode-se
contrapor o exemplo de laicismo e de coragem intelectual de Victor Klemperer,
acima citado. Quando obrigado a se esconder para escapar à perseguição e à
“solução final” que o Terceiro Reich reservou aos judeus, ele não hesita em
falar, a propósito dos escritos e da ideologia de Herzl, de “extraordinário
parentesco com o hitlerismo”, de “profunda comunhão com o hitlerismo”. Pode-se
talvez chegar a uma conclusão ainda mais radical: “A doutrina da raça de Herzl
é a fonte dos nazistas; são estes que copiam o sionismo, não vice-versa”.
Na associação entre nazismo e sionismo temos todavia um
“enfático norte-americanismo”, ou seja, o mito de um Far West a ser colonizado,
de um território virgem que o Terceiro Reich procura na Europa oriental e o
sionismo na Palestina. Não é o próprio Herzl que remete de maneira explícita ao
modelo do Far West? O único esclarecimento é que os sionistas pretendem
proceder a uma “tomada de posse da terra” que não deixe nada à improvisação 7. A
conclusões não muito diversas daquelas de Klemperer, chega Hannah Arendt. De
estímulo para a chacina de Deir Yassin houve uma mistura explosiva de
“ultranacionalismo”, “misticismo religioso” e pretensão de “superioridade
racial”.
Assumindo “a linguagem dos nacionalistas mais radicais”, o
sionismo configura-se de maneira explícita como “pan-semitismo”8; mas por que
razão o pan-semitismo deveria ser melhor do que o pan-germanismo? Herzl está
obcecado pela preocupação de manter firme a identidade cultural e étnica do
judaísmo: não declara ele mesmo que o sionismo deverá procurar os seus
“aliados” e os seus “amigos mais devotos” entre os anti-semitas, eles mesmos
desejosos de evitar contaminações entre povos diversos na sua alma e na sua
essência9? A partir disso Arendt chega a uma conclusão radical: o sionismo “não
é mais que a aceitação acrítica do nacionalismo de inspiração alemã”. Ele
assimila as nações a “organismos biológicos superhumanos”; mas também para
Herzl “não existiam mais do que agregados sempre iguais de pessoas, vistas como
organismos biológicos misteriosamente dotados de vida eterna”10. E, novamente,
remetendo ao “nacionalismo de inspiração alemã”, cheio de motivos “biológicos”,
somos reconduzidos ao nazismo ou, pelo menos, à ideologia sucessivamente
herdada e radicalizada pelo Terceiro Reich.
Utilizei até agora os artigos e as intervenções de Arendt
anteriores à sua virada anticomunista e antimarxista ocorrida com a eclosão da
guerra fria. Mas é interessante notar que, ainda em 1963, a filosofa não perdeu
nada de sua carga desmistificadora. Por ocasião do processo Eichmann, “o
ministério público denunciou as infames leis de Nuremberg de 1935, que tinham
proibido os matrimônios mistos e as relações sexuais de judeus com alemães”.
Contudo, no próprio momento em que foi pronunciado esse requisitório, em Israel
tinha vigência uma legislação análoga, de modo que “um judeu não pode casar com
um não judeu”. E não é tudo. A “lei rabínica” comporta toda uma série de
discriminações de base étnica: “Os filhos nascidos de matrimônios mistos são,
por lei, bastardos (os filhos nascidos de pais judeus fora do vínculo
matrimonial são legitimados), e se alguém tem por acaso uma mãe não-judia, não
pode se casar e não tem direito ao funeral”. Sobretudo, Arendt chama a atenção
sobre o entusiasmo suscitado, no seu tempo, no criminoso nazista pelas teses
expressas por Herzl no seu livro O Estado judeu: “Depois da leitura deste
famoso clássico sionista, Eichmann aderiu prontamente e para sempre às ideias
sionistas”11.
Talvez, nesse caso, em Klemperer e na própria Arendt, mais
que uma exasperação polêmica, há um real excesso de simplificação: é difícil
atribuir ao sionismo as ambições de domínio planetário e de inversão radical em
sentido reacionário do curso da história que desempenham um papel central na
ideologia e no programa político de Hitler; além do mais não existe
equivalência entre racismo e contra-racismo (ou seja, racismo de reação). Mais
equilibrada, revela-se uma outra eminente personalidade judaica, o historiador
George L. Mosse, o qual, aliás, também chama a atenção para o fato de que o
sionismo pensa a “nação judaica” nos termos naturalistas propagados pelos
turvos “ideais neogermânicos”, que se difundem a partir do fim do século XIX,
desempenhando um papel não insignificante no processo de preparação ideológica
do Terceiro Reich12. Sobre isso será preciso continuar a raciocinar e a
discutir, mas os gritos escandalizados surgidos por ocasião da Conferência de
Durban querem justamente impedir o raciocínio e a discussão.
Contudo, pelo menos um ponto resulta agora suficientemente
claro. Sobre a abertura concreta do sionismo, sobre as relações sociais e
“raciais” vigentes atualmente em Israel, damos a palavra a judeus de orientação
democrática, esclarecendo que não se trata de nenhum modo de extremistas, dado
que publicam as suas intervenções no International Herald Tribune. Pois bem,
aqui podemos ler que, ainda que uma democracia, Israel é uma “democracia de
casta segundo o modelo da antiga Atenas” (que por fundamento tinha a escravidão
dos bárbaros), ou seja, segundo o modelo do “Sul dos USA” nos anos da
discriminação racial contra os negros.
O quadro que Israel apresenta é claro: “A sua minoria de
árabes israelenses vota, mas tem um estatuto de segunda classe sob muitos
outros aspectos. Os árabes, sob seu governo na Cisjordânia ocupada, não votam e
estão privados quase de todo direito”13. A prática da discriminação contra os
palestinos caminha pari passo com a sua “desumanização”14. É um dado de fato:
nos territórios de uma maneira ou de outra controlados por Israel, o acesso à
terra, à educação, à água, a liberdade de movimento, o gozo dos direitos civis
mais elementares, tudo depende do pertencimento étnico. Somente os palestinos
correm o risco de ter a propriedade destruída, de serem deportados, de serem
torturados (mesmo os que ainda são menores de idade), de serem entregues aos
esquadrões da morte: e, tudo isso, não na base em uma sentença da magistratura,
mas na base no arbítrio das autoridades policiais e militares, ou seja, sob a
decisão soberana do Primeiro ministro. Sharon “fala ainda com orgulho da sua
dura campanha contra os militantes palestinos em Gaza trinta anos atrás, quando
destruía com tratores as casas e deportava os pais dos adolescentes envolvidos
nos protestos”15. Assim, como no-lo informa a imprensa norte-americana, é
possível ser deportado não somente com base em uma suspeita, mas também a
partir de vínculos de parentesco com um jovem suspeito de ter lançado uma pedra
contra um soldado israelense. E corre-se este risco sempre e somente sendo
palestino.
Não é racismo tudo isso? Por outro lado, enquanto rejeita
com horror a reivindicação dos refugiados palestinos de retorno à terra da qual
foram expulsos pela violência, Israel convida os judeus de todo o mundo a se
estabelecerem no Estado judeu e encoraja a colonização dos territórios
ocupados, dos quais os palestinos continuam a serem expulsos. O que é isso
senão limpeza étnica?
As árvores e a floresta
Diante da terrível evidência da realidade, como parecem
retrógrados os apelos que uma certa esquerda dirige aos palestinos e árabes
para que não se ocupem de problemas muito “complexos” como o sionismo e o
racismo de Israel, concentrando se ao invés disso na crítica ou na condenação
de Sharon [ou de Netanyahu]! Mas, por parte da esquerda ocidental, esta
condenação está pelo menos à altura da situação? No fim de 1948, por ocasião da
visita de Begin aos EUA, Arendt apelava à mobilização contra o responsável pela
chacina de Deir Yassin, fazendo notar que o partido por ele dirigido resultava
“estreitamente aparentado com os partidos nacional-socialistas e fascistas”16.
Por que a esquerda ocidental não ousa exprimir-se com a mesma clareza com
relação ao responsável pelo massacre de Sabra e Chatila? Além do mais, ainda
que a condenação de Sharon estivesse à altura dos crimes, nem por isso o
assunto poder-se-ia considerar encerrado.
Com a mesma lógica, com a qual uma certa esquerda convida a
deixar de lado a questão do racismo de Israel e do papel do sionismo,
poderíamos nos perguntar: por que não se limitar à denúncia do governo de
Berlusconi (ou dos precedentes governos Amato e D’Alema) ao invés de criticar o
capitalismo? E por que não centrar fogo sobre Bush filho (ou sobre Clinton ou
sobre Bush pai) ao invés de trazer à discussão o imperialismo? É a lógica dos
reformistas mais medíocres e mais miúdos: estão dispostos – bondade deles – a
dar uma olhada nessa ou naquela árvore, mas ai de você se lhes acenar para a
existência de uma floresta! Contudo, se não se olha para a floresta será
impossível não só resolver positivamente a tragédia do povo palestino, como
também analisá-la de modo adequado.
Esta tragédia não teve início com [Netanyahu], Sharon, ou
com Barak, e nem mesmo com os governos anteriores. De “injustiça perpetrada
contra os árabes”, Arendt17 fala já em 1946, e nessa mesma circunstância afirma
que a fundação de Israel “tem pouco a ver com uma resposta aos anti-semitas”.
Com efeito, basta folhear ainda que rapidamente Herzl, para dar-se conta que
para ele a contradição principal é a que contrapõe os “judeus fiéis à estirpe”
aos judeus “assimilados”, acusados de fazer o jogo de quantos gostariam do
“ocaso dos judeus mediante miscigenação” e de praticar matrimônios mistos (onde
por matrimônios mistos estão compreendidos também aqueles entre judeus
convertidos e judeus “fiéis à estirpe” e à religião18).
A ferocidade do anti-semitismo (que culmina no horror de
Auschwitz) tem indubitavelmente alimentado de maneira poderosa o movimento
sionista, mas os seus fundadores sempre declararam de maneira aberta que a
opção sionista é independente do anti-semitismo e continuaria a ser válida
“ainda que o anti-semitismo desaparecesse completamente do mundo”19. Para
dizê-lo com as palavras de Arendt, o sionismo está empenhado em utilizar o
anti-semitismo como “o fator mais saudável da vida judaica”, como a “força motriz”
primeiro da criação e depois do desenvolvimento do Estado judeu20.
Particularmente instrutiva é a recente visita de Sharon a
Moscou. Ele observou o desenvolvimento na Rússia da vida cultural e religiosa
da comunidade judaica: é uma espécie de “época de ouro”. Tudo bem, portanto? Ao
contrário, porque o primeiro ministro israelense assim prosseguiu: “Isso me
preocupa, pelo fato de que nós temos necessidade de um outro milhão de judeus
russos”21. Para angustiar Sharon não está o perigo do antisemitismo, mas, pelo
contrário, o da assimilação. Tornam-se agora evidentes os resultados
desastrosos a que conduz a tendência a lançar o olhar às árvores tomadas
isoladamente, mas desinteressando-se da floresta no seu complexo.
Critica-se a política de colonização dos territórios
ocupados, mas cala-se sobre o convite aos judeus russos (ou norte-americanos ou
alemães e de todo o mundo) para imigrar maciçamente a Israel: como se entre as
duas coisas não houvesse nenhum nexo! Se, ao contrário, queremos captar tal
nexo, devemos ousar olhar para a floresta. Esta floresta é o sionismo, o
colonialismo sionista, com as práticas racistas que toda forma de colonialismo
comporta.
Refugiar-se na “complexidade” para evitar a obrigação
intelectual e moral de exprimir um julgamento sobre o sionismo, significa
assumir uma atitude similar à do revisionismo histórico, o qual também não se
cansa de sublinhar a “complexidade”, no caso do fascismo, por exemplo. E não
sem alguma razão, dado que, em seu tempo, foi o próprio Palmiro Togliatti que
alertou contra as simplificações apressadas, chamando a atenção para o fato de
que o fascismo é sim um movimento reacionário, mas um movimento reacionário
que, pelo menos por um certo período de tempo, graças também à sua demagogia
social, chegou a gozar de uma base de massa e até mesmo a atrair intelectuais
que sucessivamente iriam amadurecer uma nítida opção pela esquerda. É uma lição
de método que vai muito além da análise do fascismo. Remeter à complexidade é
legítimo e fecundo quando estimula uma articulação mais rica e concreta do
julgamento histórico, chamado a dar conta dos elementos de diferenciação e
contradição que sempre irrompem no curso do processo de desenvolvimento de um
fenômeno histórico complexo. Outras vezes, ao contrário, remeter à complexidade
é uma fuga ao julgamento histórico, é um abandonar-se à mística da
inefabilidade: é expressão de vontade mistificadora, ou seja, de assombro.
A causa anti-sionista dos palestinos e a causa dos judeus
progressistas
Negar que o sionismo e a fundação do Estado de Israel sejam
em primeiro lugar a resposta ao anti-semitismo e afirmar que desde o início os
palestinos sofreram
uma injustiça, significa que se deva lutar pela destruição
do Estado de Israel? Como fundamento dos EUA há um crime originário realizado
contra os pele-vermelhas e os negros. E, todavia, ninguém pensa em fazer
retornar os brancos à Europa, os negros à África e em despertar os que são de
pele-vermelha do sono eterno. Desde os seus inícios, Israel tratou os
palestinos em parte como se fossem pele-vermelhas (privando-os de suas terras e
às vezes submetendo-os a dizimações), em parte como negros, discriminados,
torturados, humilhados, na melhor das hipóteses constrangendo-os a ocupar os
segmentos inferiores do mercado de trabalho.
O reconhecimento desse crime originário é o primeiro
pressuposto para que possa haver justiça e reconciliação. Mas uma crítica tão
radical a Israel e ao próprio sionismo não corre o risco de realimentar o
anti-semitismo? Hannah Arendt fez troça do mito de um antisemitismo eterno. É
um mito que afunda suas raízes no sionismo. Pelo menos os seus expoentes mais
radicais, a partir de sua visão naturalista da nação, tendem a instituir uma
contraposição natural e eterna “entre os judeus e os gentis”. Ou seja, o mito
do anti-semitismo eterno afunda suas raízes em uma visão ela mesma densa de
humores racistas. Em todo caso, é evidente o componente chauvinista dessa
visão.
Não afirma Herzl que “uma nação é um grupo de pessoas
mantidas juntas por um
inimigo comum”? É a partir de tal “teoria absurda” – observa
a corajosa pensadora de origem judaica – que os sionistas cultivam o mito do
anti-semitismo eterno22. São observações que remontam a 1945, mas que hoje são
mais atuais do que nunca. Ainda depois de sua virada em sentido anticomunista e
antimarxista, em 1963, Arendt declara que o “anti-semitismo, graças a Hitler,
ficou desacreditado, talvez não para sempre, mas certamente pelo menos para a
época atual”23. Por sua vez um conhecido cientista político norte-americano escreveu
que, em nossos dias, “na Europa ocidental o anti-semitismo para com os judeus
foi em larga medida suplantado pelo antisemitismo para com os árabes”24. Na
realidade, isso não vale somente para as metrópoles urbanas na Europa
Ocidental, mas também e sobretudo para o Oriente Médio.
A autenticidade do envolvimento contra o racismo mede-se não
a partir da homenagem, ainda que devida, para com as vitimas do passado, mas, a
partir em primeiro lugar, do apoio às vitimas atuais. Se não sabe tornar
própria até o fundo a causa do povo palestino, a luta contra o racismo é
somente uma frase vazia. É para ficar então atônito quando se lê em um “diário
comunista” o convite para deixar “o anti-semitismo – antisionismo de princípio
– aos racistas”25. A autora dessa afirmação, ou melhor dessa assimilação, ao
mesmo tempo em que se recusa a levar em consideração a acusação de colonialismo
e de racismo dirigida ao sionismo, de fato não hesita em taxar de racistas,
entre outros, Victor Klemperer e Hannah Arendt. Quando esta última, em 1963,
publica Eichmann em Jerusalém, com as suas flechas contra o sionismo e contra a
tentativa de Israel de instrumentalizar o processo em sentido antiárabe,
torna-se alvo de acusação como anti-semita. Na França, o semanário Nouvel
Observateur, ao publicar trechos do livro (escolhidos com perfídia),
pergunta-se sobre a autora: Est-elle nazie? É nazista? 26
Essa campanha não cessou, ainda que agora tenha em mira
alvos considerados mais cômodos. Das colunas do International Herald Times
expoentes progressistas da comunidade judeus norte-americana lançaram um grito
de alarme: objetos de “desumanização” não são somente os palestinos, mas também
os judeus que exprimem um julgamento crítico complexo sobre Israel, chegando às
vezes a colocar em discussão o sionismo enquanto tal. É uma atitude que lhes
pode custar caro, porque, além dos insultos, eles recebem repetidas ameaças de
morte 27.
Aceitando acriticamente a equiparação de anti-sionismo e
anti-semitismo propalada pelos dirigentes de Israel, uma certa esquerda trai
não só a luta dos palestinos, mas também a dos judeus progressistas em Israel e
no mundo, sob certos aspectos, não menos difícil e não menos corajosa.
Notas:
1 Vladimir Lênin, Opere Complete, vol. XXXIX, Editori
Riuniti, Roma, 1955, p. 654.
2 Edward
Said, La questione palestinese. La tragedia di essere vittima delle
vittime, trad. Italiana Gamberetti, Roma, 1995, pp. 103-6
3 Hannah Arendt, Ebraismo e modernitá, org. G. Bettini,
Unicopoli, Milão, 1986, p. 83.
4 Hannah
Arendt, Essays & Kommentare, orgs. E. Geisel e K. Bittermann, Tiamat,
Berlim, vol. II: Die Krise des Zionismus, 1989,.pp. 114-5.
5 Hannah
Arendt, Ebraismo… 1986, pp. 85-8 e 92.
6 Victor
Klemperer. Ich will Zeugnis ablegen bis zum letzten, vol. II: Tagebücher
1942-1945, org. W. Nowojski, Aufbau, Berlim, Quinta edição, 1996, p. 146.
7 Theodor
Herzl, “Der Judenstaat” (1896), in Theodor Herzl’s Zionitische Schrifen, org.
L. Kellner, Jüdischer Verlag, Berlin-Charlottenburg, vol. I, 1920, pp. 117-8.
8 Hannah
Arendt, Ebraismo… 1986, pp. 101-2.
9 Hannah Arendt, Ebraismo… 1986, p. 30, nota 11 e p. 98.
10 Hannah
Arendt, Ebraismo… 1986, pp. 107-8 e 131
11 Hannah
Arendt, Eichamann in Jerusalem. A Report on the Banality of Evil (1963),
tradução italiana La Banalità del male. Eichmann a Gerusalemme (1964).
Feltrinelli, Milano. V edição. 1993, pp. 15-6 e 48.
12 George
L. Mosse, The Crisis of German Ideology (1964), trad. Italiana Le
origini culturali del Terzo Reich, Il Saggiatore, Milão, 1968, p. 270.
13 Robert
A. Levine, 2001. “The Jews of the Wide World Didn’t Elect Sharon”, in
International Herald Tribune, 5 de junho de 2001, p. 8.
14 Michael
Lerner, “A Jew Gets Death Threats for Questioning Israel”, in International
Herald Tribune, 23 de maio de 2001, p. 9.
15 Lee
Hockstader, “Palestinian Authority described as ‘Terrorist’”, in International
Herald Tribune, 1 de março de 2001, p. 4.
16 Hannah
Arendt, Essays & Kommentare… 1989, p. 113.
17 Hannah
Arendt, Ebraismo… 1986, p. 133.
18 Theodor
Herzl, op. cit, pp. 52 e 49.
19 Max
Nordau, Der Zionismus. Neue, vom Verfasser vollständig umgearbeitete und bis
zur Gegenwart fortgeführte Auflage, org. Wiener Zionistischen Vereinigung,
Buchdruckerei Hélios, Viena, 1913, p. 5.
20 Hannah
Arendt, Ebraismo… 1986, p. 125.
21 William
Safire, “Sharon in Moscow, Sword in Hand”, International Herald Tribune, 8-9 de
setembro de 2001, p. 4.
22 Hannah
Arendt, Ebraismo… 1986, pp. 90 e 97-8.
23 Hannah
Arendt, Eichmann…, 1993, pp. 18-19.
24 Samuel
P. Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order,
1997, p. 293.
25 Rina Gagliardi, “Discutendo di sionismo e sinistra”, in
Liberazione, 29 de agosto de 2001, p. 8.
26 Amos
Elon, “The Case of Hannah Arendt”, in The New York Review of Books, 6 de
novembro de 1997, pp. 25 e 29.
27 Lerner, op. cit.
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Domenico Losurdo nasceu em 1941, na Itália. Professor de
História da Filosofia na Universidade de Urbino, doutorou-se com uma tese sobre
Karl Rosenkranz. Escreveu, entre outros livros,
A linguagem do império: léxicoda ideologia estadunidense (Boitempo, 2010), Democracia ou bonapartismo (Unesp,
2004), Nietzsche, o rebelde aristocrata (Revan, 2009) e
Luta de classes: umahistória política e filosófica (Boitempo, 2015).
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