sábado, 23 de julho de 2011

Desmond Tutu, Israel e Eu


Desmond Tutu, Israel e Eu

25/05/2011


Para mim, é tão imoral empresas lucrarem com a ocupação israelense da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Leste quanto era no caso das empresas que lucravam com o apartheid sul-africano. Como o mundo e eu aprendemos há 25 anos, a pressão externa é muitas vezes necessária para provocar mudanças políticas e deter um governo opressor. A geração de hoje está preparada para desempenhar um papel histórico, ajudando a trazer a paz, a justiça e a igualdade para o Oriente Médio. O artigo é de Jordan Ash.

Jordan Ash - Common Dreams

(*) Jordan Ash é representante do movimento Jewish Voice for Peace, em Minnesota (EUA)

Quando eu era criança, minha mãe incutiu-me um forte sentido de certo e errado. A moral que ela transmitiu estava firmemente enraizada na história do povo judeu. Minha mãe falou-me dos pogroms na Rússia, das duras condições de trabalho que os judeus tiveram que suportar e da discriminação que enfrentaram nos Estados Unidos. Ela também me falou de Samuel Gompers, que fundou a Federação Americana do Trabalho, e de Michael Schwerner e Andrew Goodman que deram suas vidas, ao lado de James Chaney, no movimento em defesa dos direitos civis.

As lições que aprendi foram claras. Devemos lutar pela Justiça. A discriminação e o preconceito são coisas erradas. Todas as pessoas são iguais e merecem ser tratadas com dignidade e respeito.

Nos feriados, comemorávamos momentos onde praticamos essas lições. Na Páscoa, nos lembrávamos que éramos escravos no Egito. A Chanukah é a história de como Judas Macabeu e um pequeno grupo de homens derrotaram o exército grego para que pudéssemos praticar a nossa religião. No Purim, nós vaiávamos quando ouvíamos o nome de Haman, que queria destruir os judeus e brindávamos a Ester que arriscou a vida para salvar seu povo.

E, é claro, ela me falou do Holocausto, das formas heroicas com os quais os judeus lutaram e dos modos horríveis pelos quais morreram. Esta foi a história que deu tanta importância à fundação de Israel. Era como se, após uma sucessão de tragédias, a história do nosso povo tivesse um final feliz.
Como fui ensinado, os árabes queriam negar-nos esse final feliz e jogar todos os judeus no mar, simplesmente porque eram judeus. Eu, como tantos outros judeus, não fui ensinado que a fundação de Israel exigiu a remoção forçada de 700 mil palestinos.

Quando cheguei à faculdade, em 1985, rapidamente me envolvi em uma tentativa de envolver a escola em um boicote contra empresas que faziam negócios com a África do Sul. Fui preso em um ato de desobediência civil, juntamente com outros dez estudantes, incluindo Amy Carter, filha do ex-presidente e ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Jimmy Carter.

Por volta dessa época, vi um panfleto que falava sobre a aliança profana entre os Estados Unidos, África do Sul e Israel. Eu quis acreditar que se tratava de uma falsa acusação promovida por anti-semitas contra Israel, mas não era. Israel forneceu armas para o regime do apartheid.

Alguns anos mais tarde, quando Nelson Mandela foi libertado da prisão e visitou os Estados Unidos, alguns judeus ameaçaram protestar por causa de declarações de Mandela, comparando a luta dos palestinos com a dos negros sul-africanos.

O fato de essa verdade sobre Israel ser algo muito doloroso, eu ignorei-a. Mesmo eu que procurava viver com os valores transmitidos por minha meu, que trabalhava com os sindicatos e organizações da comunidade, ignorei o que as pessoas estavam dizendo sobre a opressão contra os palestinos. Eu coloquei Israel fora da minha mente e, por um longo tempo, também coloquei os judeus fora de minha mente.

Então, vinte anos depois, ouvi um grupo de jovens judeus se manifestarem contra o que Israel estava fazendo nos territórios ocupados e como eles – como judeus – se sentiram obrigados a fazer tudo o que podiam para impedir isso.

Eu fui para Israel então, para ver com meus próprios olhos. Eu vi que Israel estava construindo um muro de 425 milhas, separando comunidades e famílias umas das outras, agricultores de suas terras e impedindo os palestinos de chegarem ao trabalho ou à escola. Vi que o governo israelense estava demolindo casas palestinas, enquanto continuava permitindo a construção de novos assentamentos judaicos.

Ficou claro para mim que o principal interesse de Israel não era alcançar a paz, mas tomar as melhores terras para si, enquanto forçava os palestinos a uma vida de pobreza cheia de lembranças diárias de seu “status inferior”. A minha experiência confirmou o que Jimmy Carter tinha dito: que Israel criou um sistema de apartheid.

Pouco tempo depois de ter voltado, a Universidade de St. Thomas, em St.Paul, desconvidou o arcebispo Desmond Tutu para uma atividade, após o Conselho de Relações da Comunidade Judaica ter dito que Tutu teria feito comentários ofensivos à comunidade.

O que Tutu havia dito? “Eu fiquei profundamente angustiado na minha visita à Terra Santa, que me lembrou muito do que aconteceu com nós, negros, na África do Sul. Eu vi a humilhação dos palestinos nos postos de controle e de bloqueio nas estradas, sofrendo como nós, quando os jovens policiais brancos nos impediam de nos locomover”. Às vezes a verdade dói.

O site JCRC Minnesota apresenta uma citação do líder zulu sul-africano Chefe Buthelezi dizendo que “o regime israelense não é o apartheid”. Quem é o chefe Buthelezi? Ele foi um dos únicos negros sul-africanos a se opor ao boicote e a incentivar o investimento estrangeiro na África do Sul, alegando que era uma coisa boa para o povo negro. A comunidade empresarial internacional abraçou-o e ignorou o fato de que todos os líderes negros do movimento anti-apartheid eram a favor de sanções e do boicote.

Inspirado pelo sucesso do movimento de boicote e de desinvestimento contra o apartheid sul-africano, uma ampla fama de organizações da sociedade civil palestina fez um apelo em 2005 em favor da campanha Boicote, Desinvestimento e Sanções como parte de uma campanha não violenta para acabar com a ocupação israelense.

As pessoas que se opunham ao boicote à África do Sul 25 anos atrás argumentavam que a melhor maneira de mudar o apartheid era por meio do “engajamento construtivo” das corporações com o regime do apartheid. Elas estavam erradas.

Para mim, é tão imoral empresas lucrarem com a ocupação israelense da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Leste quanto era no caso das empresas que lucravam com o apartheid sul-africano. Como o mundo e eu aprendemos há 25 anos, a pressão externa é muitas vezes necessária para provocar mudanças políticas e deter um governo opressor. A geração de hoje está preparada para desempenhar um papel histórico, ajudando a trazer a paz, a justiça e a igualdade para o Oriente Médio.

(*) Jordan Ash é representante do movimento Jewish Voice for Peace, em Minnesota (EUA)

Tradução: Katarina Peixoto

Palestinos, MST e Bolsa Família: os conservadores reacionários não suportam!


Qual é a graça?

07/06/2011

É tênue a linha que separa certas crenças irrefletidas do ódio que leva sionistas a matar de fome crianças palestinas, neoconservadores a ridicularizar todo sujeito que não se encaixe no protótipo do macho moderno e intelectuais orgânicos da velha direita brasileira a desqualificar todo interlocutor que não cheire à tradição, família e propriedade.

Marcelo da Silva Duarte

Em artigo recentemente publicado nesta Carta Maior (“Os palestinos entendem Kadafi melhor do que nós”, 17/03/2011), Robert Fisk chama nossa atenção para comportamento que representa “tendência crescente e muito cruel no pensamento da direita israelense”.

Segundo o jornalista inglês, Michael Bernstam, membro da Hoover Institution, da prestigiada Universidade de Stanford, teria publicado, há algumas semanas, na revista estadunidense American Commentary, artigo denunciando o que alcunhou de “caldo de cultivo para o terrorismo internacional”.

Conforme Bernstam, o Organismo de Socorro e Obras Públicas das Nações Unidas (UNRWA - United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East, na sigla em inglês), agência que desde os anos 60 ocupa-se da ajuda humanitária a refugiados palestinos, teria criado “refugiados de guerra permanentes” ao fazer desaparecer, através do fornecimento de auxílio-desemprego, os incentivos ao trabalho e ao investimento. Velha ladainha liberal sustentada, de um lado, pelo “laissez-faire” e, de outro, pelo voluntarismo do “self made man”, o argumento de Bernstam supõe que a vontade livre e irresoluta do “homo economicus”, mola-mestra da economia, e o interesse pessoal esclarecido são condições suficientes para que sujeitos empreendam e, desse modo, economia e sociedade evoluam. Incentivos públicos ou privados, portanto, seriam obstáculos ao desenvolvimento, pois tudo o que não é útil não pode ser bom.

Tese de rara selvageria especulativa, esse fatalismo reducionista sustenta que determinadas pessoas preferem viver sob lonas porque é a “condição de refugiado sem limite de tempo” que lhes “põe o pão na mesa, garante a casa sem pagar aluguel, além de um conjunto de serviços gratuitos” e, de quebra, torna-os indolentes. Donde, como “cabeça vazia é ofício do diabo”, ser nesses acampamentos que está, ainda segundo Bernstam, “a garantia de continuidade de um ciclo palestino autônomo destrutivo de violência, de derramamento de sangue fratricida e de uma guerra perpétua contra Israel”.

Ou seja, é a ONU a responsável, em última instância, pelo terrorismo de fundamentalistas palestinos, pois é nos acampamentos de refugiados por ela atendidos - “caldo de cultivo para o terrorismo internacional” - que ele se reproduz e se mantém, e isso graças às migalhas a eles distribuídas pela comunidade internacional.

A teoria de Bernstam não consegue dar conta, porém, da existência do sionismo, uma vez que em Israel estão ausentes as condições necessárias para a formação do caldo de cultivo para seu terrorismo ultranacionalista; sionistas não estão acampados, sob sol e chuva, em barracas miseráveis, vivendo à custa de auxílio-desemprego, o que os tornaria indolentes e, por conseguinte, justificaria toda violência física e moral que diariamente despejam sobre os palestinos. Nada como psicologia barata para se explicar a inconsciente tendência sionista de, pela força, invadir e tomar territórios alheios, isolá-los do restante do mundo e matar crianças de fome pelo bloqueio econômico a eles imposto. Como se vê, a solução para a Palestina Ocupada não passa pelo diálogo e nem pela mediação internacional, mas sim pelo estímulo ao trabalho e ao investimento através do cancelamento do auxílio financeiro internacional aos refugiados palestinos. Se disso não se seguir a paz e o desenvolvimento – na medida em que você pode empreender, produzir e gerar empregos em acampamentos - ao menos todos eles morrerão de fome.

Tendência semelhante e não menos cruel pode ser verificada no pensamento da direita brasileira reacionária. A “intelligentsia” de sua elite, perspicaz a ponto de deixar a cargo de seus leões-de-chácara intelectuais o tratamento de questões impopulares tal como o racismo e a homofobia (1) , tem dois alvos principais, sobre os quais não costuma tergiversar.

Recentemente, promotores de justiça gaúchos fizeram questão de deixar isso claro. Ricardo de Oliveira Silva, que atuou como assessor parlamentar de Simone Mariano da Rocha, Procuradora-Geral de Justiça no governo tucano de Yeda Crusius (2007/2010), Benhur Biancon Jr., ex-assessor de Carlos Otaviano Brenner de Moraes – que ocupou as pastas de Transparência e Meio Ambiente nesse mesmo governo - na Associação do Ministério Público e ex-Chefe de Gabinete da então Procuradora, e Luis Felipe de Aguiar Tesheiner, ex-chefe do Núcleo de Inteligência do Ministério Público, foram responsáveis pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proibindo as escolas itinerantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Rio Grande do Sul (RS). Já Biancon Jr. e Tesheiner assinaram, em 2008, a Ação Civil Pública contra o MST que acabou ganhando repercussão nacional e internacional pelo estilo “Guerra Fria” adotado contra o Movimento.

Segundo a referida Ação, os acampamentos Jandir e Serraria, no interior do RS, eram “verdadeiras bases operacionais destinadas à prática de crimes e ilícitos civis causadores de enormes prejuízos não apenas aos proprietários da Fazenda Coqueiros, mas a toda sociedade”. A Ação, que se baseou em um “trabalho de inteligência” composto, na sua maioria, por matérias de jornais, relatórios do serviço secreto da Brigada Militar e livros e cartilhas apreendidas em acampamentos do MST, definiu o Movimento como uma “ameaça à sociedade e à própria segurança nacional” em franca “estratégia confrontacional” com o Estado. Nesta época, comentou então o jornalista gaúcho Marco Weissheimer, “um documento do Conselho Superior do Ministério Público chegou a propor a extinção do MST, iniciativa que não prosperou em virtude da forte reação que surgiu contra ela”. Gilberto Thums, atual Coordenador-Geral da Procuradoria de Justiça Criminal do Ministério Público gaúcho, por sua vez, considera o MST um movimento “fora-da-lei”.


Esse tipo de paranoia ganha força quando nos damos conta que se trata da consequência, e não de causa, de uma predisposição discursiva dessa “intelligentsia”, em regra reproduzida irrefletidamente também, e infelizmente, por parcela de nossa classe média. A hoje senadora "progressista" Ana Amélia Lemos a ilustrou ao comentar a hipótese de revisão dos índices de produtividade rural discutida ainda no governo Lula (2003/2010). “O problema não é a produtividade – sentenciou a então comentarista política do Grupo RBS -, mas sim a interferência do Estado na liberdade do produtor, que pode perder a terra, sob esse manto legal. Breve, o governo poderá tentar resolver o déficit habitacional desapropriando campos de golfe e casas de praia que não cumprem função social”.

Dito de outro modo, pouco importa se o proprietário rural produz ou não de acordo com índices estipulados como razoáveis para que seja cumprido aquilo que nossa Constituição Federal chama de “função social da terra”, uma vez que “a questão é a interferência do Estado na liberdade do produtor, que pode perder a terra, sob esse manto legal“. O direito individual de propriedade – e de se dispor absolutamente mesmo de um bem de interesse público –, por conseguinte, é tratado pelo pensamento pré-colonial (2) de Ana Amélia Lemos como um direito acima dos sociais e coletivos.

Esses intelectuais orgânicos, todavia, não representariam adequadamente a parcela medieval de nossa sociedade se não fossem, também, críticos ferrenhos da mobilidade social de sua base. Todas as políticas públicas afirmativas – de inclusão social e distribuição de renda, como as cotas raciais em universidades públicas e o bolsa-família, p. ex. - postas em prática no governo Lula foram sistematicamente desqualificadas pelos bobos da corte de plantão, a despeito de terem promovido, a olhos vistos e com reconhecimento internacional, a maior distribuição de renda e de dignidade de nossa história.

Nem mesmo o equilíbrio entre desenvolvimento e poder aquisitivo, promovido pela associação entre tais ações afirmativas e as políticas monetária, fiscal e cambial postas em prática nos últimos oito anos – até então mera utopia tucana -, escapou dos menestréis do servilismo; em recente episódio de repercussão nacional, ex-comentarista do Grupo RBS (grupo de empresas que, ao arrepio da legislação em vigor, monopoliza a comunicação nos estados do RS e SC) em Santa Catarina viu como causa do aumento do número de acidentes de trânsito em seu estado o ganho aquisitivo das classes C e D, promovido pelo governo Lula – “Este governo espúrio permitiu que qualquer miserável tivesse um carro”, foram suas palavras. Como se sabe, lugar das classes C e D, como certa feita defendeu preconceituoso cronista do Grupo RBS famoso no bairro Azenha, em Porto Alegre, ao comentar a possibilidade de se discutir publicamente projetos para o trecho do porto fluvial da capital gaúcha conhecido como Cais Mauá, é em “shoppings populares”. O referido Cais, sustentou, “há que ser da nata, da classe A”. Só assim, complementou, “os menos favorecidos” teriam “onde trabalhar e onde flanar, que eles flanam”, referindo-se à atividade de cuidar de carros estacionados na rua exercida por pessoas popularmente conhecidas como “flanelinhas”.

Em matéria de mobilidade social, porém, nada provocou mais a ira dos abutres da miséria alheia do que o “bolsa-família”. E, nesse sentido, qualquer semelhança entre seus argumentos e o de Michael Bernstam não é mera coincidência. A única diferença é que o Governo Federal brasileiro, ao fazer desaparecer, através do fornecimento do referido auxílio, os incentivos ao trabalho e ao investimento, criou não “refugiados de guerra permanentes”, mas uma massa de vagabundos permanentes, condição que lhes “põe o pão na mesa, garante a casa sem pagar aluguel, além de um conjunto de serviços gratuitos”. Donde, por conseguinte, um acampamento do MST, por analogia, não passar de “caldo de cultivo” para a “prática de crimes e ilícitos civis causadores de enormes prejuízos” à toda sociedade”. Nada mais sensato, então, em sintonia com a política externa sionista para a Palestina Ocupada e os refugiados que ela gerou, do que postular a extinção dessas “bases operacionais”, verdadeira “ameaça à sociedade e à própria segurança nacional” em franca “estratégia confrontacional” com o Estado.

Não há diferença substancial entre a intolerância de Michael Bernstam, dos referidos promotores gaúchos, da senadora integrante da bancada ruralista, dos funcionários do Grupo RBS e dos supostos humoristas. Embora quase não possamos distinguir a essência de seus argumentos, tratá-los como mero preconceito de classe seria, na melhor das hipóteses, um cavalheiresco reducionionismo. É mais do que isso; trata-se do caldo de cultivo do ódio fascista que desconhece a humanidade do outro.

Não sei exatamente quando a apologia à violência contra a mulher e o machismo viraram humor, quando a homofobia e o racismo transformaram-se em argumentos e, muito menos, quando a insensibilidade histórica tornou-se algo engraçado. Sei, todavia, que é tênue a linha que separa certas crenças irrefletidas do ódio que leva sionistas a matar de fome crianças palestinas, neoconservadores a ridicularizar todo sujeito de razão que não se encaixe no protótipo do macho moderno – heterossexuais hedonistas metidos a engraçadinhos com suas eternas barbas por fazer, cujo narcisismo niilista asséptico é a própria negação da política e do debate público qualificado como espaço necessário à sua efetivação - e intelectuais orgânicos da velha direita brasileira a desqualificar todo interlocutor que não cheire à tradição, família e propriedade.

NOTAS

(1) Cf., p. ex., os recentes casos de racismo e de homofobia envolvendo o deputado federal progressista Jair Bolsonaro (RJ), a ameaça de processo à blogueira Lola Aronovich por parte de um certo humorista chamado Marcelo Tas, que a acusa de tê-lo caluniado e difamado ao supostamente chamá-lo de misógino, o caso de machismo e de apologia à violência contra a mulher protagonizado pelo humorista conhecido como Rafinha Bastos, que segundo a referida blogueira teria defendido “com todos os dentes piada de estupro (é um favor uma mulher feia ser estuprada, estuprador merece um abraço etc)”, o caso de insensibilidade histórica protagonizado pelo também humorista Danilo Gentili, que teria escrito em seu twitter, ainda segundo Aronovich, que entendia porque os judeus do bairro paulistano de Higienópolis seriam contra a construção do metrô em seu bairro, pois “da última vez que entraram num vagão, foram parar em Auschwitz”, assim como, também, os recentes casos de mobilização de variadas correntes protestantes e de católicos contra decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que equiparou a união de casais homoafetivos à figura civil da União Estável.

(2) O pensamento da senadora gaúcha é pré-colonial porque, como nos ensina Raimundo Faoro, “(…) vibra, nas normas jurídicas que orientaram a distribuição do solo aos colonos, a velha lei consolidatória de D. Fernando I (provavelmente 1375), lei de transação entre a burguesia rural e a aristocracia agrária, não aplicada no tempo, mas incorporados seus princípios nas Ordenações Alfonsinas, Manoelinas e Filipinas. A feição mais importante do instituto – a reversão da terra não cultivada à Coroa – conservou-se graças à revolução de Avis, com o perfil de predomínio da coisa pública – dos fins e objetivos públicos – sobre a ordem particular. A terra se desprende, desde o século XIV, de seu caráter de domínio, adstrito ao proprietário, para se consagrar à agricultura e ao povoamento, empresas promovidas pelo rei a despeito da concepção de propriedade como prolongamento da pessoa, da família ou da estirpe (…)“ (Raimundo Faoro. Os Donos do Poder – Formação do patronato político brasileiro. Vol. 1, Capítulo IV, p. 140). Ou seja, a manutenção da sesmaria recebida pelos então colonos estava condicionada ao seu aproveitamento, quadro jurídico assegurado pelas Ordenações, Direito então vigente na Colônia. Havia, portanto, uma noção de função social e de utilidade da terra mesmo entre nossos colonizadores. Ana Amélia Lemos consegue, na defesa dos proprietários rurais, ser mais atrasada socialmente do que se era há 500 anos. Daí sua defesa da propriedade absoluta, sem função social alguma, ser um pensamento pré-colonial.

* Mestrando em filosofia. Mantém o blog www.laviejabruja.blogspot.com


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