terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Quando Duvivier, Bolsonaro, Wyllis e Crivella estão no mesmo campo

A normalização de um crime: quando Duvivier, Bolsonaro, Wyllis e Crivella estão no mesmo campo


Enquanto Israel coloniza a Palestina, cresce o apoio ao país entre personalidades e políticos brasileiros à esquerda e à direita


Por Arturo Hartmann e Bruno Huberman - Revista Fórum


Duviver apoia o estado terrorista de Israel

Na semana passada, o parlamento israelense votou pela legalização do confisco de propriedades privadas palestinas por parte do Estado de Israel. Essa medida acarretou a regularização de 53 assentamentos judeus quehaviam sido construídos em terras particulares na Cisjordânia sem autorizaçãoprévia do governo, o que era considerado irregular pela legislação israelense até a madrugada da quarta-feira, 8.

A medida poderia ser vista como mais um passo para o isolamento de Israel na comunidade internacional. Praticamente toda a comunidade internacional condena a colonização israelense dos Territórios Palestinos Ocupados (TPO) desde 1967 — ilegal pela lei internacional, com base na Resolução 242 do Conselho de Segurança e na IV Convenção de Genebra. Israel, entretanto, tem historicamente empreendido um bem-sucedido processo de propaganda institucional e limpeza da sua imagem entre importantes setores de diferentes países e instituições internacionais, forjando um apoio às suas políticas apesar das críticas que pipocam de todos os lados. O humorista brasileiro Gregório Duvivier é um importante exemplo do sucesso deste lobby internacional.

No início de janeiro, o ator viajou a Israel à convite da Universidade Hebraica de Jerusalém, uma instituição que tem em seus pilares violações contra os palestinos. A universidade fica a pouco metros do bairro de Silwan, principal local de judaização em andamento na cidade, onde assentamentos judeus são erguidos ao redor de casas palestinas: já são 2.800 colonos ilegais vivendo entre cerca de 100 mil palestinos, segundo a ONG israelense Btselem. O crescimento desses colonos, entre 2009 e 2016, foi de 70%. Nesse período, 68 famílias palestinas foram expulsas de Silwan, Sheik Jarrah e do quarteirão muçulmano da Cidade Velha. Algo que pode passar batido diante do olhar de um turista de primeira viagem.

O convite a Duvivier foi para o seminário “Brasil, Israel e Palestina: política, religião e a busca pela paz”, organizado pelo professor James Green, brasilianista da Brown University, e Michel Gherman, docente da Hebraica e coordenador do Centro de Estudos Judaicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A viagem do humorista se insere em uma agenda específica, que a acadêmica Berenice Bento chamou em um recente artigo de “redwashing”: um tipo de discurso de “esquerda” que serve para limpar a imagem de Israel, posicionando o país como a única democracia liberal do Oriente Médio, respeitadora dos direitos humanos, como a igualdade para mulheres e homossexuais. Tal como Bento descreve, aqueles que praticam o “redwashing” terminam não apenas sendo cúmplices da expulsão e segregação dos palestinos, como são parte estruturante do projeto sionista, que busca estabelecer uma ampla maioria judaica sobre a terra.

Duvivier não é o primeiro garoto propaganda do campo progressista israelense no Brasil. Um ano antes, em janeiro de 2016, o deputado federal Jean Wyllis (Psol), defensor dos direitos da comunidade LGBT, da descriminalização da maconha e de outras pautas ligadas ao campo progressista, provocou barulho nas redes sociais e entre a esquerda brasileira — inclusive dentro do seu partido — por fazer o mesmo trajeto. Estes são apenas dois exemplos de um antigo e bem sucedido esforço de propaganda e lobby israelense, conhecida como hasbará (“explicação”, em hebraico).


Wyllys apoia o sionismo que comete crimes de guerra na Palestina


UM HUMORISTA NA PALESTINA


Duvivier é famoso por vídeos de humor no canal do Youtube “Porta dos Fundos” que colocam o dedo na ferida, além de colunas no jornal Folha de S. Paulo em que defende pautas progressistas e ataca políticos — muitas vezes sendo acusado de extremismo por seus detratores. O humorista, entretanto, adotou uma abordagem mais low profile durante visita ao Oriente Médio, relativizando crimes e consensos internacionais em torno da questão palestina.

Segundo Guilherme Cohen, candidato a vereador do Rio de Janeiro pelo Psol em 2016 e cicerone de Wyllis e Duvivier na Terra Santa, o humorista teria rapidamente compreendido a complexidade da questão Palestina/Israel e fugido de binarismo em seu discurso na Universidade Hebraica. “O grande problema pra mim é quando você não vê pessoas e passa a ver somente bandeiras ou religiões. Quando você começa a enxergar pessoas, você entende que não é apenas um país, são 7 milhões de países, pois cada cidadão têm sua própria narrativa”, disse Duvivier na palestra.

As postagens de Duvivier em sua conta no Instagram são ainda mais reveladoras da sua adesão à agenda da nova esquerda sionista.

Um post de 13 de janeiro mostra que o humorista esteve em Bethlehem, cidade palestina nos TPO, diante do Muro (que separa e anexa terras palestinas, construído a partir de 2002), um monumento às práticas políticas mais recentes de colonização. Diante da estrutura de concreto armado de oito metros de altura, ele escreve na legenda da foto: “Israel-Palestine border” (fronteira Israel-Palestina). Alguém da comitiva deve ter esquecido de avisar a Duvivier que atrás daquele Muro não havia Israel, mas os vilarejos palestinos de Al Walaja e Husan, que repousam “presos” entre a Israel reconhecida pela comunidade internacional e o Muro. Em outro post, em que se lia pichado no Muro “Make hummus not walls” (faça húmus, não muros), ele escreveu “Coexist” (coexista). Talvez fosse uma piada.


O Muro da Vergonha de Israel


Ainda em Bethlehem, Duvivier foi apresentado ao palestino Jamil. Cohen traz um relato do encontro: “Ele nos contou sua história de vida, que é marcada por muita violência, tragédias e luta pela paz. Jamil nos disse que participou da primeira intifada, sendo um dos que mais jogava pedras nos soldados israelenses. Viu seu irmão de apenas 14 anos ser morto por um soldado. Viu muitos amigos morrerem nesse conflito tão terrível. Ele tinha tudo para ter raiva, ódio e todo o sentimento de vingança em relação aos Israelenses. Mas não! Um acontecimento mudou toda a sua visão de mundo. Viu pela televisão uma notícia sobre um atentado terrorista de um grupo palestino em Jerusalém, que matou muitas crianças israelenses. Quando sua mãe começou a chorar, ele perguntou:

– Por que você chora, mãe? Isso foi do lado de lá… Os mortos não são palestinos, mas judeus – ele questionou.

– Choro porque outras mães perderam seus filhos pela violência, como eu. A dor é a mesma – respondeu ela.

E arrematou: “Jamil transformou tudo isso na luta pela paz! Hoje participa de diversos movimentos com Israelenses e Palestinos que lutam contra a ocupação e pela criação de 2 estados para 2 povos. Nosso encontro terminou com Jamil dizendo: ‘Não há outro caminho senão a paz’”.

Duvivier concordou. “Esse cara é meu herói. Conheci Belém com o militante palestino Jamil Qassas, que tem buscado alternativas para a paz. Procurem saber.” Em outro post, poucos dias depois, o humorista complementa: “O pior conflito, o mais difícil de resolver, não parece ser entre judeus e palestinos, mas entre seculares e fundamentalistas. A paz não interessa a quem vive de disseminar o medo. Qualquer semelhança com o Brasil não será mera coincidência.”


A vergonha do Muro da Segregação, do racismo


Como recomendado, fomos procurar saber mais. A atitude de Jamil pode ser vista como nobre, como uma saída para existir alienado de tanto sofrimento, da dor que transforma alguém em um monstro. O tema da resistência na sociedade palestina, no entanto, é um debate delicado e gira em torno da legitimidade do uso da violência. Qual a forma que pode fazer mudar as relações de poder para que o conjunto de Palestina/Israel possa ser menos autoritário e desigual diante do projeto do Estado judeu? Como os crimes de Israel – que trazem debates como o direito de retorno e a restituição de terra – podem ser expiados? Isso depende de como a pessoa de fora olha para os muros, os postos de controle e uma pesada presença militar, seja o cenário os morros do Rio de Janeiro ou as montanhas da Palestina.

A comitiva de Duvivier poderia ter recorrido à lei internacional para prover uma melhor explicação para a resistência palestina. Diz a resolução da ONU, de 29 de novembro de 1978, com o título “Importância da realização universal dos direitos dos povos à autodeterminação e da garantia urgente de independência para países coloniais e povos de garantia efetiva e observância de direitos humanos”. No seu item 2, “reafirma a legitimidade da luta dos povos por independência, integridade territorial, unidade nacional e liberação de dominação colonial e estrangeira e de ocupação estrangeira por todos os meios disponíveis, particularmente a luta armada”.

Há uma diferença entre luta armada e terrorismo, entre resistência e crimes de guerra contra civis, mas ao aceitar as molduras (físicas e ideológicas) traçadas pelo establishment de esquerda israelense, Duvivier termina por condenar a resistência palestina, colocando-a na mesma balança que os crimes coloniais israelenses. E mais: coaduna com a coexistência sem responsabilização que silencia os últimos cem anos de gradual desaparecimento da Palestina.


Duvivier comemorando o flamengo em Israel


QUANDO ESQUERDA E DIREITA SE ENCONTRAM


As viagens de Duvivier e Wyllis são parte de um esforço coordenado de propaganda de militantes sionistas ligados ao campo da esquerda no Brasil e em Israel, como o professor Michel Gherman e o militante do Psol Guilherme Cohen, e que conta com o apoio do establishment sionista no Brasil, como a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (Fierj), movimentos sionistas juvenis, partidos políticos e instituições univesitárias. Já embarcaram neste avião o secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e ex-presidente da Comissão da Anistia do Brasil, Paulo Abrão (que defendeu Wyllis publicamente durante o entrevero público de sua viagem) e o professor de Relações Internacionais da UFRJ e comentarista da Globo News, Fernando Brancoli.

O discurso da esquerda sionista mistura em uma mesma narrativa a defesa de medidas como o Muro da Cisjordânia, a colonização dos TPO e o interminável processo de paz com elogios às liberdades políticas e econômicas que gozam os judeus israelenses e críticas ao governo Netanyahu, numa espécie de mea culpa. Vale dizer que, embora divergentes entre si em questões econômicas e sociais, a esquerda e a direita sionista não são muitos diferentes aos olhos de um palestino. Desde o início da colonização sionista da Palestina, no final do século XIX, ambos os campos direcionaram as suas políticas para a realização da visão hegemônica sionista sobre o território palestino: a constituição de um estado-nação majoritariamente judaico do qual os nativos palestinos não fariam parte.

A força do lobby israelense é motivo de controversa global, sendo alvo de estudos acadêmicos (o livro The Israel Lobby, dos americanos John Mearsheimer e Stephen Walt, aborda a influência israelense nos EUA — link para o prefácio em inglês) e de reportagens investigativas (uma recente série da Al Jazeera mostra a agressiva atuação de diplomatas israelenses no Reino Unido). Este instrumento de propaganda, entretanto, não é um expediente exclusivo dos liberais, sendo extensamente utilizado pelos conservadores israelenses.

No Brasil, os esforços de propaganda da direita sionista tem encontrado apoio principalmente entre os setores evangélicos, como o pastor Marcelo Crivella (PRB-RJ), prefeito do Rio de Janeiro, e o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ). As igrejas pentecostais ao redor do mundo tradicionalmente veem os judeus como os legítimos habitantes da bíblica Terra de Israel e são importantes apoiadores das políticas do moderno Estado de Israel.

Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, é talvez o maior defensor dos interesses de Israel entre os políticos brasileiros. É de sua autoria o projeto de lei que levou à criação do Acordo de Livre Comércio Mercosul-Israel, em 2009, e também o que criou o “Dia da Amizade Brasil-Israel”. O bispo ainda empresta a sua voz para a música “Sou Israel”, que tem mais de 300 mil visualizações no canal do Templo de Salomão no Youtube.




O mandatário carioca já esteve em Israel algumas dúzias de vezes, chegando a morar em um kibutz em uma delas. “Brasil e Israel tem tudo a ver”, afirmou durante visita à Fierj na campanha para a prefeitura do ano passado. Ele defende uma maior aproximação comercial e política entre os países, principalmente na importação de técnicas e tecnologias israelenses em agricultura e segurança. Logo após ser eleito prefeito do Rio de Janeiro, Crivella viajou à Israel. De lá, voltou com a opinião de que o Rio “deveria sermurado como Jerusalém” para resolver seus episódios de violência.

Outro candidato à prefeitura do Rio de Janeiro que esteve em Israel recentemente foi Flavio Bolsonaro, que em maio deste ano foi acompanhar o batismo do pai nas águas do rio Jordão, o deputado federal Jair Bolsonaro, no rio Jordão, pelo pastor Everaldo, presidente do PSC. A família Bolsonaro recentemente aderiu em peso ao partido evangélico. Durante a viagem a Israel —que ocorreu nos dias da votação do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados — os Bolsonaro reuniram-se com políticos e representantes comerciais israelenses das áreas da segurança e da agricultura e prometeu fortalecer os laços entre os dois países.



Bolsonaro é fiel apoiador do estado terrorista de Israel


Assim, dentro de um campo que, pouco a pouco, ignora os pontos que poderiam levar a uma resolução da questão palestina, consolida-se um discurso que se afasta de qualquer processo de paz, fazendo marchar a colonização que gradualmente quer apagar, ou limpar, como diria o historiador Illan Pappé, a Palestina.

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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Israel-Brasil, as conexões perigosas


Brasil-Israel, as conexões perigosas
“Caveirões” de Israel, importados com finalidade explícita de reprimir protestos populares: apenas um dos itens da vasta pauta de vendas militares de Telaviv ao Brasil


Como Exército, PMs e forças privadas de segurança brasileiras tornaram-se grandes compradores de material bélico e de vigilância israelense. Por que negócios favorecem opressão da Palestina


Por Júlia Dolce e Victor Labaki, Brasil Fato


Uma placa metálica com a foto de um menino magro decora a entrada do campo de refugiados de Aida, em Belém (Cisjordânia). Um texto curto explica, em inglês e árabe, que o garoto franzino era Aboud Shadi, apelido de Abed Al-Rahman Shadi Obeidallah. Ele foi assassinado por um soldado israelense no dia 15 de outubro de 2015, exatamente naquele local, quando tinha 13 anos. Aboud Shadi conversava com amigos.

Segundo os relatos de várias testemunhas, Abud estava parado quando o sniper [atirador de elite] atirou, de frente ao muro que divide os territórios anexados israelenses de Belém, atingindo o garoto no coração. Ele foi levado ao hospital, mas não resistiu. Sem razão aparente para a ação, as forças militares israelenses confirmaram que o assassinato “foi um erro”, e o soldado responsável permanece impune. Na placa em homenagem a Aboud, lê-se: “Minha alma continuará aqui, perseguindo o assassino e motivando meus colegas de classe. Eu me pergunto quando a comunidade internacional trará justiça para as crianças palestinas”.

Soldado israelense mata menino palestino de 13 anos


Com olhos marejados e voz baixa, Shadi Obeidallah, pai de Aboud, contou para a reportagem que todos os dias passa em frente à placa, já danificada com buracos de outros tiros. “Parece que ele está me perguntando o porquê de eu não ter o protegido da ocupação, porquê deixei ele ser morto, disse.

A presença de Aboud é constante na vida do pai. “Eu penso nele o tempo todo. Colocamos um prato e talheres para ele na hora do almoço. Todos os dias eu volto para casa do trabalho, faço café e converso com a foto dele em um porta-retrato. É minha hora preferida do dia”, disse.

No ano passado, Shadi encontrou com o então secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-Moon, na cidade palestina de Ramallah, e perguntou o que poderia fazer pelas crianças palestinas assassinadas. “Ele não me respondeu”, disse. Logo em seguida, ele encerrou a entrevista: “Não é fácil falar sobre isso”.

O que Shadi provavelmente não sabe, entretanto, é que, uma semana antes do assassinato do filho, o Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU divulgou relatório acusando a Polícia Militar brasileira de matar crianças em situação de rua com o objetivo de “limpar a cidade” para os Jogos Olímpicos de 2016. Em julho do mesmo ano, a Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) publicou relatório mostrando que 28 pessoas menores de 19 anos foram mortas diariamente no Brasil, uma taxa maior do que em zonas de guerra, de acordo com a agência.

O laboratório

A conexão entre os dados e a morte de Aboud Shadi seria apenas uma coincidência, se não fosse o fato de que tanto o treinamento quanto a renovação bélica da Polícia Militar e do Exército brasileiro para os megaeventos esportivos entre 2014 e 2016 foram importados das Forças Armadas israelenses.

Segundo especialistas no tema, o Brasil é um dos maiores clientes da indústria de armamentos de Israel. Matéria publicada na Folha de S. Paulo em janeiro deste ano mostra que o Exército Brasileiro fechou acordo de R$ 6,3 bilhões com empresas israelenses para compra de blindados nos próximos anos. Uma das fornecedoras – a empresa Elbit – é acusada de ter construído drones que mataram 164 crianças palestinas em Gaza, durante a ofensiva de 2014. Os dados são da ONG Defense for Children International Palestine (DCI).

De acordo com informações fornecidas à reportagem pela organização Who Profits, centro de pesquisa dedicado à monitoração das relações comerciais envolvendo multinacionais israelenses, a Elbit foi uma das primeiras companhias israelenses a entrar no mercado de vigilância brasileiro. A organização destacou outras empresas que também operam no Brasil, como a Afcon Holdings, que desenvolve sistemas de controle presentes nos checkpoints da Cisjordânia; a Carmor, especializada em veículos militares; e a Contact International, também produtora de equipamentos militares.

Segundo o antropólogo e escritor israelense Jeff Halper, as relações econômicas e bélicas entre Brasil e Israel são muito significativas. “O Brasil é um grande cliente. (…) O principal ponto da indústria militar israelense é que ela não fica apenas no militar, atua na segurança e no policiamento. No Rio de Janeiro e em outras cidades onde você tem policiais de pacificação em favelas, eles são treinados por israelenses e com armas israelenses.

Para Halper, que já foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz pela atuação “em prol da libertação dos palestinos”, a importância que o Estado de Israel assumiu no contexto internacional está relacionada justamente à exportação de inteligência militar. “Israel está em todos os países, não apenas diretamente no sentido militar, mas em termos de treinamento, exportação de armas, unidades de operação especial, segurança presidencial. Está mais dentro das sociedades do que os Estados Unidos, exatamente porque eles ficam nos termos militares e nós vamos para a segurança, a polícia, as prisões”, explicou.

Na opinião do escritor, é exatamente esse papel internacional que livra o país de condenações na Justiça. “Dessa forma, Israel escapa do fato de fazer uma ocupação há 50 anos, de estar realizando crimes de guerras, dezenas de violações da lei internacional da ONU. Mesmo com tudo isso o status internacional de Israel é positivo. A única explicação para isso é a política de segurança de Israel, um país minúsculo que transforma segurança militar e policial em poder político. (…) Em um país como o Brasil, com todas as desigualdades, Israel vai dar todo o sistema de segurança e vigilância para controlar a população. Esse controle populacional é o que fazemos há 70 anos. Somos um laboratório, controlamos palestinos e isso é o que nos diferencia no mercado: milhões de palestinos indo para os checkpoints diariamente”, analisou.

A expressão “laboratório” é utilizada por diversos ativistas para descrever a relação militar de Israel com os territórios ocupados palestinos. O documentário “The Lab”, do diretor Yotam Feldman, explora exatamente essa relação e importância para a legitimidade da indústria bélica israelense. No filme, o Brasil é novamente citado como um grande parceiro comercial de Israel, e algumas cenas mostram tanques e armas israelenses sendo utilizadas em operações no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, favela que é popularmente conhecida como a “Faixa de Gaza” carioca.

A ativista israelense e estudante de pedagogia Sahar Vardi é uma liderança no movimento contra a militarização e ocupação de Israel na Palestina. Presa por dois meses durante processo de ‘recusa’ ao serviço militar obrigatório, Sahar acredita que a utilização da tecnologia militar nos palestinos é “definitivamente o diferencial no mercado”. “Nós exportamos para mais de 130 países, não há dúvida de que a exportação da militarização de Israel é um fenômeno mundial. A ocupação não é uma necessidade para a indústria militar, nem vice-versa, já que essa indústria começou nos anos 1970 e já havia ocupação antes disso. Mas sem dúvida há um interesse econômico da indústria em manter a ocupação”.

Segundo Sahar, em 2013, o governo brasileiro destinou 1,13% do Produto Interno Bruto (PIB) do país para “modernizar as forças armadas com equipamentos israelenses”. Ela destaca a companhia israelense International Security & Defense Systems (ISDS), que faz treinamentos para as polícias brasileiras em favelas. No site da companhia, já na página inicial, consta o slogan de “fornecedora oficial dos jogos olímpicos Rio 2016”. No final da página, a conexão com Israel é abertamente marcada. “A ISDS é uma empresa registrada e certificada pelo Ministro de Defesa de Israel e opera de acordo com suas regulações e diretrizes”.

Militarização

No mirante que marca a saída do museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, Yahav Zohar, ex-guia do museu, aponta para a vista de um assentamento israelense. Ele explica, em voz baixa, que antigamente havia uma vila palestina no local, destruída durante a Nakba em 1948 (nome palestino para o processo de construção do Estado de Israel, que significa “catástrofe”). Repleto de imagens fortes sobre as consequências do nazismo, a proposta do museu – exemplificada até mesmo na arquitetura – é celebrar a conquista de Israel como uma espécie de redenção para os judeus.

Yahav, que serviu o exército como a maior parte da população judia de Israel, pediu demissão do emprego no museu por não poder compartilhar as críticas que tem sobre a ocupação israelense na Palestina. Pelo mesmo motivo, um amigo dele, que também era guia, foi demitido. Entre diversos grupos de soldados que visitavam o museu como parte obrigatória do serviço, Yahav mantinha um tom de voz discreto e parecia afastar memórias ruins.

“Há similaridades entre o holocausto e o que estamos fazendo aqui com palestinos. O problema é que acreditamos que essa foi a única tragédia da humanidade, quando não foi mais importante ou horrível do que a escravidão em toda a América, por exemplo. Nós temos que parar de acreditar que estamos em perigo o tempo todo. Se você se esforça tanto para lembrar uma parte da história quanto para suprimir outra parte, você perde seu argumento”, opinou.

Educação

A visita ao Museu Yad Vashem é realizada pelo menos três vezes durante a vida dos israelenses. Além da ida pelo Exército, as escolas de Israel levam estudantes quando crianças e durante o ensino médio. Para Nurit Peled, professora da Universidade Hebraica de Jerusalém, ativista e estudiosa da forma como os palestinos são retratados no sistema educacional israelense, a educação militar é uma das principais facetas do sionismo atual. “Eles têm processos de segurança na escola a partir dos três anos, os soldados vão para os jardins de infância e contam para as crianças todo o tipo de informações. Eles são modelos, a maior aspiração de todo jovem é ser soldado, seja ele de direita ou de esquerda. O maior desejo dos pais é que os filhos sejam soldados. Eles foram doutrinados da mesma forma”, explica.

Alguns feriados israelenses, para ela, também mostram como a militarização é cultuada na sociedade. “Eles aprendem muito sobre o Dia de Independência, o Dia em Homenagem aos Soldados e o Dia do Holocausto. Celebram os assassinatos de árabes. É tudo relativo à morte. A imagem que a militarização vai nos salvar de um outro holocausto é muito forte. É bastante difícil para um jovem se rebelar contra isso, os números de pessoas que recusam o exército, por exemplo, são praticamente inexistentes”.

Sionistas qeurem matar árabes em câmara de gás
Pixação sugerindo matar árabes em câmaras de gás, feita em frente à escola infantil palestina, em Hebron.


A história da recusa de Sahar ao serviço obrigatório, mesmo para ela própria, é uma exceção. “Cada um de nós [amigos que também recusaram o alistamento] foi aprisionado por cerca de uma semana ou um mês. Depois fomos mandados novamente para a base militar para continuar nosso ‘serviço’. Então recusamos de novo e fomos condenados novamente. Esse processo se repetiu algumas vezes. É um processo muito difícil, algumas vezes eu me pegava pensando porque estava fazendo aquilo. O efeito psicológico das prisões é muito grande”, explicou.

Para a ativista, a militarização na sociedade israelense influencia diversos aspectos sociais. “Parte disso é o fato de carregarmos armas o tempo inteiro para todos os lugares, já que os soldados podem levar as armas para casa nos finais de semana, levar para festas e transportes públicos. Mas vai além disso. Nós incorporamos parte da linguagem militar na nossa comunicação diária e nem pensamos nisso, é completamente internalizado. A forma como estudamos história é muito centrada no nacionalismo e nas Forças Armadas. Nas propagandas e comerciais, há sempre soldados, pois eles são idealizados, são o modelo. A militarização e o medo estão realmente em todos os aspectos da sociedade”.

Na opinião do colono israelense-estadunidense Bob Lang, representante do assentamento de Efrat e defensor da ocupação militar da Palestina, os israelenses não vivem em constante medo. “Para mim, a militarização é normal. É natural ver soldados com armas na rua e que as crianças sejam revistadas nas escolas, não é bom ou ruim, é só o jeito como as coisas são. Obviamente, eu gostaria que as Forças Armadas não precisassem existir e espero o dia em que isso aconteça. (…) Eu não vivo com medo aqui, não mais. Tenho mais medo da minha filha viajando pela América do Sul do que servindo ao Exército em Israel”, afirmou.


O mesmo não pode ser dito por Shadi Obeidallah, pai de Aboud. Perguntado sobre os sonhos e gostos do filho, afirmou: “Ele sonhava, como qualquer outro palestino da idade dele, em brincar em segurança. Passou toda a vida no campo de Aida, mas os soldados não o deixavam brincar. Se viam as crianças brincando, jogavam gás lacrimogêneo e atiravam com balas de borracha. Como qualquer menino, ele só queria brincar sem estar em perigo”.


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Israel sem máscaras: brasileira desvenda a “única democracia” no Oriente Médio

Desmontando a farsa da democracia isralense



Israel sem máscaras, por uma feminista brasileira


Vigilância permanente. Proibição de atividades políticas. Espancamentos. Censura. Por trás dos rótulos de “única democracia do Oriente Médio” e “país libertário” esconde-se uma ditadura perfeita




Relato de viagem de Berenice Bento*


Qual a maior peça publicitária do Estado de Israel? Ser a única democracia do Oriente Médio. Os Estados têm suas estratégias para produzir imagens positivadas, mesmo que não tenham nenhum fundamento empírico, a exemplo do mito perverso da democracia racial brasileira. Desmontar as farsas, meticulosamente construídas por Estados, demanda uma energia considerável.

Estive duas vezes na Palestina e em Israel. A primeira em agosto de 2015 para participar de um evento científico em Ramallah, capital da Cisjordânia. A segunda, de novembro de 2016 a janeiro de 2017. Foram 66 dias de imersão na realidade da “única democracia” do Oriente Médio. Tenho um longo diário de viagem com as histórias de perseguição do Estado aos/às palestinos/as e aos/às “árabes israelenses”, identidade fictícia produzida por Israel para negar a identidade palestina. Decidi, neste curto artigo, contar a minha própria experiência.

Em algum momento, na fase de preparação da primeira viagem, fui deslocada no tempo. Percebi que teria que utilizar técnicas de simulação para conseguir entrar em Israel, próximas àquelas que acionava para fugir da repressão na época da ditadura civil militar no Brasil. A suposta “democracia israelense” foi ficando cada vez mais borrada quando comecei a ter contato com diversas organizações de direitos humanos e humanitárias que têm suas sedes em Jerusalém Oriental (ocupada por Israel). Todas vivem em uma situação de clandestinidade ou de semiclandestinidade. Quando eu perguntava por que não denunciam abertamente a situação política ditatorial a que são submetidas, a resposta não alterava substancialmente: se assumirmos que estamos fazendo ativismo de direitos humanos aqui, somos deportados. A expressão chave é “low profile” (discrição). Nome chique e gringo para dizer: aqui corremos perigo, precisamos ter cuidado, ser discretos.

Organizei o relato de minha experiência em quatro partes: preparação, chegada, estadia e partida.


Preparação

Era a primeira vez que estava indo para o Oriente Médio. Foram meses de preparação. Quando tudo estava quase pronto, escrevi para a organização querendo saber se eles poderiam me passar algum contato de algum brasileiro/a que iria participar do evento. Talvez pudéssemos nos ajudar mutuamente com trocas de informações. A página do evento era pobre, não havia quase nenhuma informação sobre os trabalhos aprovados, tampouco os nomes dos/as pesquisadores/as. Aliás, não tinha nenhum nome pessoal na página. O que antes sugeria descuido começou a ter outros sentidos depois que recebi a resposta ao meu pedido: “não podemos fornecer nomes por questões de segurança”.

Iria escutar a mesma explicação outras vezes. Conforme o evento se aproximava, recebia orientações que seriam fundamentais para que eu conseguisse passar pelo controle de segurança no aeroporto em Tel Aviv. As mais importantes: 1) não diga que está indo para Ramallah, 2) mesmo que você vá direito para Ramallah, faça uma reserva em um hotel em Jerusalém Oriental (ocupada por Israel), 3) diga, preferencialmente, que está indo fazer turismo religioso, 4) apague de seu computador TODAS as mensagens que tenham o nome Palestina, 5) não tenha em sua bagagem pesada ou de mão nenhum livro ou matéria com as cores da bandeira ou/e o nome Palestina.

Na segunda viagem, estas mesmas orientações foram reforçadas por colegas de ONGs humanitárias (ainda agora, ao escrever este relato, me dou conta da situação absurda. Não posso citar nomes para não colocá-los/as em risco, uma vez que eles continuam trabalhando em Jerusalém Oriental e nos Territórios Ocupados por Israel). Afirmavam ser imperativo retirar todo material publicado nas minhas redes sociais em que eu fizesse referência à Palestina. Por uma semana retirei meus artigos do meu blog, apaguei fotos em que apareço com algum símbolo que me identificasse como apoiadora da luta pela autodeterminação do povo palestino. Despendi um tempo considerável limpando mensagens e saindo de grupos de whatsapp, fiz um roteiro fictício de peregrinação religiosa. Um último conselho de um amigo: vá bem vestida. Os militares que controlam a entrada no país gostam de gente que chega com roupas de marca e têm certo ar europeu (este último conselho tornou-se impossível seguir).

No aeroporto Ben Gurion

Há duas filas no aeroporto, uma para os estrangeiros e outra para os nacionais, considerado nesta categoria qualquer judeu de qualquer parte do mundo. Nas duas vezes, fui submetida a um pequeno interrogatório. Estas foram algumas das questões: É sua primeira vez? O que você vem fazer aqui? Conhece alguém? Por que você está sozinha (esta pergunta foi feita três vezes)? Onde ficará hospedada? Qual sua profissão? Quais as disciplinas que você ensina? Onde? Você tem um roteiro de sua visita? Você só tem reserva para poucos dias, e depois? (Recomendo o TedTalk Ramallah no Youtube de Alice Walker, escritora de A cor púrpura, no qual narra a sua entrada em Israel).

Eu tentava manter a calma e até esboçar um sorriso discreto para aparentar segurança, mas tinha certeza de que eu iria para o “room”, local onde os militares fazem os interrogatórios. Quase podia sentir meus joelhos tocando-se de tão trêmula. Para me acalmar, repetia um mantra enquanto via a fila diminuir: não tem problema, Berenice, se você não entrar, você tem para onde voltar. Pense nos/as palestinos/as, refugiados/as em seu próprio país. Pense nos/as exilados/as palestinos/as que não podem voltar para o seu país. Olhava a outra fila, não sabia quem era israelense ou judeu oriundo de outro país. Não sei porque, mas lembrei-me de um amigo judeu de esquerda que me disse: jamais vou pisar naquele aeroporto. Sinto vergonha.

Conheci muitas histórias de colegas que já tinham sido encaminhados para o “room”. Depois de horas de espera, e um interrogatório com níveis diferenciados de profundidade, a pessoa, finalmente, terá a permissão para entrar no país ou será deportada. Ainda não consigo entender o que o Brasil faz quando um/uma brasileiro/a tem a entrada negada por Israel. No entanto, não tenho notícia de nenhum/nenhuma israelense impedido/a de entrar no Brasil, o que sugere certa desproporcionalidade nas relações diplomáticas.

Os motivos alegados para a deportação geralmente são: parentes palestinos, sobrenome árabe, participação em manifestações de apoio ao povo palestino no Brasil e, o novo fantasma do Estado de Israel, apoiar ou participar do movimento de Boicote, Desinvestimentos e Sanções a Israel como forma de exigir o fim das políticas de apartheid impostas ao povo palestino.


Estadia

Gaza é a maior prisão a céu aberto do mundo. A cidade está cercada de fora a fora por um monstro de concreto. Ninguém entra ou sai sem permissão de Israel. Os muros gigantes, no entanto, estão em todas as partes e não apenas em Gaza. E como fazer para entrar/sair? É necessário passar pelo controle militar, os chamados checkpoints. Para me deslocar, por exemplo, de Jerusalém Oriental (ocupada por Israel) para Ramallah eu tinha que atravessar o checkpoint Qalândia. Nestas ocasiões o soldado, geralmente, pegava meu passaporte e anotava meus dados no computador. Algumas vezes me perguntava: o que você está fazendo aqui? Se eu estivesse fazendo trabalho voluntário, por exemplo, em algum dos muitos campos de refugiados de palestinos que tiveram suas casas e terras roubadas pelo Estado de Israel, eu teria, mais uma vez, que mentir.

De forma geral, a orientação que recebi de ativistas e acompanhantes ecumênicos que têm mais experiência é simples: falar o mínimo possível, não dar informações desnecessárias, não ter na bolsa material identificado com ativismo político. Utilizei a mesma estratégia de décadas passadas, quando lutei contra a ditadura civil militar no Brasil: escondia dentro do casaco o livro ou fazia uma capa falsa. Qual livro eu levava? Geralmente, textos produzidos pela OCHA (Office for the Coordination of Humanatarian Affairs – Nações Unidas) com dados sobre a forma contemporânea que o Estado de Israel rouba as terras dos/as palestinos/as, os assentamentos. Estes mesmos assentamentos que o Conselho de Segurança da ONU definiu como ilegais.

Em Jerusalém Oriental (ocupado por Israel) há dezenas e dezenas de ONGs atuando. Isto não seria uma contradição com o que eu afirmei no início deste artigo de que a democracia em Israel é uma farsa? Na segunda viagem que fiz tive oportunidade de conhecer várias destas ONGs e Programas Humanitários e conversei com vários funcionários. Todos repetiam o mesmo: não podemos atuar abertamente. Temos que atuar “low profile”. Diante de minha pergunta/exclamação (“isso é uma ditadura?!”), a concordância era imediata. E por que os ativismos não denunciam abertamente o que acontece? A resposta também se repetia: se fizermos isso, o escritório fecha e os estrangeiras serão todos deportados.

Não estaria este “acordo” de silêncio, de discrição, contribuindo para que Israel continue vendendo a mentira de que é um país democrático, embora se saiba que ali reina o império do medo? É um crime perfeito. Ainda não tenho certeza, mas não sei até que ponto os ativismos globais e programas humanitários que não denunciam abertamente o que acontece não estão, de certa forma, sendo cúmplices com a reprodução do discurso de democracia, principal mecanismo utilizado para justificar as atrocidades que o Estado de Israel faz há décadas contra o povo palestino.


A partida

Antecipei meu retorno para o Brasil. Tornou-se insuportável ficar clandestina. Se tinha uma manifestação em Sheikh Jarrah, bairro palestino, eu, como internacional, fui orientada a não entrar na manifestação. Se acontecia algum conflito de rua entre os soldados e os/as palestinos/as (o que acontece quase todos os dias), eu deveria aumentar ainda mais a discrição. Esta última viagem foi importante também para conhecer os meus próprios limites em lidar com a minha dor e como reagir “diante da dor do outro” (título de um dos livros de Susan Sontag). Não sou tão forte quanto pensei.

Um dia vi um soldado chutando um palestino na hora da prece. Estava no Qalândia esperando para atravessar para Jerusalém Oriental (ocupada por Israel). De repente, vários trabalhadores palestinos se ajoelharam e começaram a rezar. O soldado gritava em hebraico alguma coisa e chutava um destes trabalhadores. Senti meus nervos vibrando, minha garganta seca e não contive as lágrimas.

Em outro dia conversei com duas crianças de 11 anos que foram presas por soldados (acusação: jogar pedras nos soldados). Não conseguia dormir. Foram noites iguais a esta que me levaram a antecipar minha volta. Tornou-se insuportável ver famílias que tiveram suas casas demolidas, conhecer histórias de crianças que são julgadas por tribunais militares.

Recomecei o ritual de preparação para meu retorno: mandar fotos para a nuvem, retirar todos os e-mails com referência à Palestina e, principalmente, mandar pelos Correios os livros, os textos, e os presentinhos que tinham escrito o nome Palestina. No aeroporto a bagagem é controlada por um serviço de segurança específico, antes de fazermos o check-in na companhia aérea. As malas nem sempre são abertas, mas sempre há a possibilidade e os relatos de confisco de computadores, câmeras, livros eram abundantes para eu arriscar.

Decisão tomada, malas prontas, de volta ao Ben Gurion. Fui conversando com o taxista sobre a minha experiência. Ele escutava e balançava a cabeça. Em determinado momento, começou a me dizer como deveria me comportar na entrada do aeroporto. Me avisou: “com você não tem problema. Eles vão fazer perguntas e uma busca no meu carro. Eles não param os carros israelenses, mas eu serei parado.” Contou-me sua história. Bisneto, neto, filho de palestinos/as nascidos/as em Jerusalém, em 1967 quanto Israel invadiu Jerusalém, eles perderam a cidadania. Oficialmente não é considerado palestino, mas árabe com residência permanente (embora, o “permanente” seja outra mentira. Ele pode perder este status e ser expulso de Jerusalém).

Chegamos no aeroporto. Ele desceu do carro, passou pelo controle de metais e o carro foi totalmente revistado. Continuei sentada dentro do carro. O soldado, do lado fora, pegou meu passaporte e me fez várias perguntas que tinham, claramente, o objetivo de saber se eu já conhecia o motorista. Desapareceu com o meu passaporte. Voltou minutos depois e fez as mesmas perguntas. Enquanto isso, o motorista tinha seu corpo escaneado. Entrou no carro e me disse que estava tudo ok. Ficamos alguns segundos em silêncio. Num tropeço de língua, lhe perguntei: “Como é possível uma vida assim?”. “Não é possível”, me respondeu.

Conforme nos aproximávamos, ele me avisou: “tá vendo aquele passageiro ali? Não é um passageiro. É um soldado à paisana. Eles estão por toda parte.” De fato, ele não poderia ser um passageiro. Nós temos uma relação de quase simbiose com nossas malas. Ele estava de braços cruzados, óculos escuros, corpo reto como uma tábua e a mala estava com ares de objeto perdido. Era um soldado.


Apertei com calor a mão do motorista. Trocamos um olhar cúmplice, uma faísca. Enquanto ele tirava minha bagagem, escrevi rapidamente, ainda dentro do carro, na nota de cem shelkes: free Palestine.


*Berenice Bento é Doutora em Sociologia e Professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)


Fonte: Outras Palavras

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