Os acompanhantes ecumênicos na Palestina se dividem em seis
times, em seis regiões diferentes da Cisjordânia ocupada. Cada região tem suas
especificidades – alguns monitoram check points por onde passam os
trabalhadores, outros acompanham crianças a caminho da escola, por exemplo. Mas
há um tipo de incidente que tem se tornado cada vez mais comum em todas as
regiões: as demolições levadas a cabo quase que diariamente pelas forças de
segurança israelenses.
Desde os Acordos de Oslo de 1993, o território da
Cisjordânia ocupada foi dividido em três áreas: a Área A, que fica sob controle
civil e securitário da Autoridade Palestina (AP); a área B, onde a AP lida com
os assuntos civis mas os órgãos militares israelenses se encarregam da parte de
segurança; e a área C, que fica totalmente sob controle do poder ocupante tanto
em assuntos militares quanto civis, o que inclui planejamento urbano e
concessão de permissões para qualquer tipo de construção. A área C corresponde
a cerca de 60% to território da Cisjordânia, enquanto que 22,8% é área B (os
centros dos vilarejos rurais) e apenas 17,2% é considerado área A (os centros
urbanos)1. Como mostra o mapa do Escritório das Nações Unidas para a
Coordenação de Assuntos Humanitários (UNOCHA), a única área contígua da
Cisjordânia é a C, enquanto que as áreas A e B são como ilhas de territórios
mais ou menos autônomos. Toda a extensão das fronteiras, assim como as
principais estradas, são controladas pelas forças israelenses.
Essa divisão deveria ser temporária e teoricamente tinha por
objetivo facilitar a retirada gradual do exército israelense da Cisjordânia:
dentro de cinco anos, a área C deveria ser considerada B e as áreas B deveriam
virar A – mas isso nunca aconteceu.
Apesar de ser, hoje, irregular, essa divisão afeta a
população palestina todos os dias, especialmente aqueles que vivem área C. Eles
são impedidos de construir novas casas ou abrigos para seus animais e até de
reformar antigas estruturas sem antes conseguir permissão das autoridades
israelenses. O processo para se candidatar a uma permissão é burocrático,
demorado, caro, e mesmo assim é praticamente impossível que ela seja
concedida2. Dessa forma, é muito comum que as famílias comecem a construir suas
casas sem autorização. Nesses casos, as autoridades israelenses podem demolir
as construções a qualquer momento.
Foi o que aconteceu com a comunidade beduína de Ein
Ar-Rashash. Aqui, o alvo das demolições não eram nem sequer estruturas
permanentes, mas tendas.
Todo o vilarejo foi demolido em fevereiro deste ano. Nos
dias que se seguiram novas tendas foram providenciadas pela ONG Acted e em
pouco tempo a comunidade se reergueu, mas desde então eles vivem sob constante
ameaça de uma nova demolição. As 12 famílias que formam essa comunidade já tem
um histórico de deslocamentos: antes da fundação do Estado de Israel em 1948,
viviam no deserto do Negev; depois disso foram forçadas a se mudar para
El-Khalil (Hebron), depois para os arredores de Jerusalém Oriental, para os arredores
de Jericó e agora vivem aqui, em Ein Ar-Rashash na região de Nablus. Ao ser
perguntado sobre o que espera do futuro, Ali Sahwahra responde:
“Que futuro? Estamos sitiados aqui. Não podemos ir a lugar
nenhum porque cada vez mais terras na nossa volta viram assentamentos ou zonas
de treinamento militar. Nem de noite temos descanso. Geralmente as pessoas
dormem e descansam à noite, mas aqui, de noite ficamos ainda mais tensos.
Dormimos ansiosos, de meia em meia hora, porque a qualquer momento o exército ou
os colonos podem chegar e fazer o que quiserem conosco.”
O vilarejo beduíno de Al-Araqib oferece um exemplo extremo
desse tipo de situação: no dia dois de novembro, a comunidade foi demolida pela
105ª vez desde 2010 – sendo que a penúltima demolição havia ocorrido menos de
um mês antes, no dia 6 de outubro. 3
Segundo o artigo 53 da IV Convenção de Genebra4, referente à
proteção de civis em tempos de guerra e em territórios ocupados, é proibido ao
poder ocupante destruir qualquer tipo de construção no território ocupado,
exceto se absolutamente necessário para fins militares. Em casos como os dessas
vilas beduínas, demolidas e reconstruídas incontáveis vezes, não fica claro que
tipo de ameça as tendas, as famílias e os rebanhos representam à segurança do Estado
de Israel. Mesmo assim, de temos em tempos, as escavadeiras chegam e colocam
tudo abaixo mais uma vez.
Na verdade, nem é necessário que a construção seja
considerada irregular para que seja demolida. A cidade de Beita, na região de
Nablus, é majoritariamente área B, o que significa que é necessário apenas
conseguir permissão das autoridades palestinas para construir. Na madrugada do
dia 3 de novembro, três lojas foram demolidas pelas forças militares
israelenses. Os terrenos são de propriedade privada e estavam sendo alugados
com permissão da prefeitura de Beita. Mohammed A., dono de uma dessas lojas,
trabalha com alguns familiares e a renda do negócio sustenta suas respectivas
famílias, o que soma cerca de 60 pessoas. Mohammed nos conta que recebeu a ordem
de demolição há um ano e meio, e desde então já havia tomado medidas legais por
meio de um advogado, alegando que o terreno era em área B e a construção estava
regularizada – em vão.
Apesar das dificuldades e do sentimento permanente de
insegurança, a vida segue em frente sob a ocupação militar. No dia seguinte à
demolição, Mohammed e alguns familiares já se empenhavam na reconstrução das
estruturas que haviam sido destruídas.
A política de demolições executada por Israel é ilegal do
ponto de vista do direito internacional em mais de um aspecto, pois contraria a
IV Convenção de Genebra e se baseia em um mecanismo criado para ser temporário,
que deveria ter acabado em 1998. Para a população palestina, é um beco sem
saída: não é possível construir na maior parte das terras, e, mesmo nos
vilarejos onde deveria ser possível, as forças israelenses podem demolir sem
restrições – e, claro, sem oferecer compensação. A sensação de vulnerabilidade
é permanente, mas a população resiste a cada vez que decide reerguer suas
casas, suas lojas, os abrigos de seus animais. Por aqui, existir é resistir.
1- Norwegian
Refugee Council Training Manual (2015): Housing, Land and Property in the West
Bank, Area C. pg. 18
2 - Norwegian
Refugee Council Training Manual (2015): Housing, Land and Property in the West
Bank, Area C. pg. 32-22
3- https://www.maannews.com/Content.aspx?id=773815
; https://www.maannews.com/Content.aspx?id=773444
Jade Lopes é formada em Relações Internacionais e no momento
participa de um programa de observação de direitos humanos na Palestina chamado
PAEPI (Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel – EAPPI na
sigla em inglês).
Fonte: Sul21
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