A cultura árabe-palestina é uma das mais antigas do Oriente Médio, destacando-se por suas realizações na arquitetura, música, dança, literatura e artes visuais. A Mesquita de Omar (foto), com sua cúpula dourada, construída no centro histórico de Al-Quds (Jerusalém) no século VII, durante a dinastia omíada, foi reconhecida pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade.
Por Claudio Daniel*
A dança típica conhecida como dabke, acompanhada por alaúde (oud), tambor (tabla), pandeiro (daff) e instrumentos de sopro (mijwiz e arghul), é outro cartão-postal da Palestina. Executada em celebrações especiais, como festas de casamento, rituais de circuncisão, para comemorar o regresso de viajantes ou a libertação de prisioneiros, possui vários estilos, entre eles a As-Samir, em que os dançarinos, agrupados em duas fileiras, em paredes opostas, fazem uma competição de poesia popular, com versos improvisados, incluindo gracejos e insultos recíprocos – algo similar aos “desafios” dos nossos poetas de cordel, tradição cuja origem remonta à tençon dos trovadores medievais, cultores por excelência das cantigas de escárnio e de mal-dizer. A poesia também está presente nos diwáns, eventos performáticos que reúnem declamação, música e dança tradicionais, que preservam a língua, história, lendas e folclore dos povos árabes, fortalecendo sua identidade cultural.
No Ocidente, a palavra diwán é conhecida desde o século XVIII graças a Johann Wolfgang von Goethe, autor do livro Diwán ocidental-oriental, obra precursora do fascínio europeu pela poesia árabe e persa, que alcançaria seu ápice na poesia de Federico Garcia Lorca, autor do Divã do Tamarit (1940), que reúne poemas que dialogam com a forma clássica da cassida.
A poesia árabe moderna, que assimilou influências do verso livre, da poesia social, do surrealismo e de outras tendências estéticas, é bastante rica e variada, e nela se destaca a obra do palestino Mahmoud Darwish (1942-2008), reconhecido como um dos mais expressivos autores da língua árabe do século XX. Nascido na aldeia palestina de Birwa, nos arredores de Akka (Acre), imigrou com sua família para o Líbano quando tinha apenas seis anos de idade, após a destruição de seu vilarejo pelos sionistas, episódio que integra a infame história da Nakba (“catástrofe”, em árabe), que levou à destruição de mais de 400 aldeias palestinas e provocou o êxodo de 750 mil palestinos, proibidos até hoje de retornarem a suas terras e lares (o número atual de refugiados e seus descendentes é calculado em cinco milhões).
Darwish destacou-se como poeta, jornalista e militante político, sendo o autor da Declaração de Argel, também conhecida como a “Declaração da Independência Palestina”, lida publicamente por Yasser Arafat, em 1988, quando o líder da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) declarou unilateralmente a criação do Estado Palestino.
A poesia de Darwish abandona a métrica e as formas de composição da poesia árabe clássica, como a cassida e o gazal, adota o verso livre e um estilo de dicção coloquial, em que o eu lírico funciona, muitas vezes, como um eu coletivo – a comunidade palestina, em especial a que vive no exílio, tema que comparece com frequência em sua obra poética. Outros temas recorrentes são a natureza, o amor, a poesia, a sensação de estranhamento, causada pela vivência no exterior, e o desejo de retorno à pátria (a busca de uma origem, real ou imaginada, é um tema caro a autores da literatura moderna, como Joyce, Celan e Kozer).
No Brasil, os poemas de Mahmoud Darwish foram apresentados pela primeira vez ao público brasileiro na antologia Poesia palestina de combate (Rio de Janeiro: Achiamé, 1981), organizada por Abdellatif Laâbi e traduzida por Jaime W. Cardoso e José Carlos Gondim. O livro, apesar de algumas incorreções (a tradução não foi feita a partir do árabe, mas de outras traduções para línguas ocidentais), tem o valor inegável de oferecer, pela primeira vez ao leitor brasileiro, uma amostragem da poesia palestina contemporânea, em que se destacam, além de Darwish, vozes singulares como as de Fádua Tuqan, Tawfik Az-Zayad e Samih Al Qassim. Como o próprio título da coletânea indica, a seleção dos poemas foi feita de acordo com critério temático: estão reunidas aqui canções de combate, que expressam a epopeia de um povo que resiste, há quase sete décadas, à brutal tentativa de genocídio humano e cultural perpetrada pelo estado sionista. Apesar dessa delimitação, que obedece a um viés político (justificável em seu contexto histórico), o resultado estético apresenta alguns ótimos resultados, como podemos verificar nas seguintes composições:
Os lábios cortados
Eu poderia ter contado
a história do rouxinol assassinado
poderia ter contado
a história...
se não me tivessem cortado os lábios.
(Samih al Qassim)
Provérbios
Segundo nosso primeiro antepassado
disseram nos provérbios
“Como uma raposa
que engole uma foice”
“O que o vento traz
a tempestade leva”
“Quem rouba os outros
vive sempre
com medo”.
(Tawfik Az- Zayad)
O primeiro poema, de Samih al Qassim (nascido em 1939), concentra sua força expressiva em apenas cinco linhas, numa estrutura similar à do haicai; porém, ao contrário do terceto japonês, não apresenta uma ação, e sim uma possibilidade, a partir da justaposição de duas breves imagens, a do rouxinol e a dos lábios cortados. O poema remete à hipótese de uma ação, que teria ocorrido se o narrador não tivesse sofrido a violência da mutilação. É uma peça ao mesmo tempo sutil e impactante, que recorda os poemas breves de Maiakovski (“come ananás, mastiga perdiz / teu dia está prestes, burguês”, na tradução de Augusto de Campos) e de Bertolt Brecht (“Escapei aos tigres / Nutri os percevejos / Fui devorado / Pela mediocridade”, em versão de Haroldo de Campos), e ainda a “poesia-pílula” de Oswald de Andrade (“Venceu o sistema de Babilônia / e o garção de costeleta”).
O segundo poema, de Tawfik Az- Zayad (1929-1954), também é construído de acordo com uma técnica de montagem, mas, desta vez, de provérbios populares árabes, retirados de seu campo habitual de referências e recontextualizados para a crítica à ocupação israelense (“Quem rouba os outros / vive sempre / com medo”). A incorporação de provérbios na poesia (e na prosa) de alto repertório é verificada em diversos autores da modernidade, como James Joyce, Guimarães Rosa e Paulo Leminski, geralmente com sentido irônico, subvertendo o sentido original dos ditos populares, que é alterado e ampliado, pela paródia. No caso da poesia lírica árabe, que se alimenta há séculos de imagens e ditos tradicionais, a subversão é ainda mais violenta. Em ambas composições, o eu lírico fala em solilóquio, mas, na peça de Tawfik Az- Zayad, o “outro” israelense também é retratado, de forma enviesada: aquele que oprime é o que sente medo, pois “O que o vento traz / a tempestade leva”. Um terceiro poema que merece breve comentário é Refugiado, de Salim Jabran (nascido em 1947):
Refugiado
O sol atravessa as fronteiras
sem que os soldados atirem
o rouxinol canta manhã e tarde
e dorme em paz
com todos os pássaros dos kibutz
um asno extraviado
pica o pasto
em paz
sobre a linha de fogo
sem que os soldados atirem nele
e eu
teu filho exilado
- Ó terra de minha pátria
entre meus olhos e teus horizontes
a muralha das fronteiras
(Salim Jabran)
A composição, desenvolvida em linguagem narrativa, sobrepõe quatro imagens: a do sol, a do rouxinol, a do asno e a do refugiado, que é o próprio eu lírico do poema. Nas três primeiras imagens, nada acontece: os elementos da natureza não são perturbados pelos soldados da fronteira, que não atiram. A quarta imagem, porém, é inconclusiva: entre os olhos do narrador e a vastidão da terra há uma muralha – e, o que o poema não diz: guaritas do exército de ocupação israelense, com soldados que disparam naqueles que cruzam a fronteira. Assim como nos poemas de Samih al Qassim e Tawfik Az- Zayad, estamos aqui no território do oculto: nada é dito claramente, o leitor deve interpretar os poemas a partir das pistas e sugestões deixadas pelos autores. Diferente estratégia textual é adotada por Mahmoud Darwish, discípulo de Whitman e de Maiakovski, que prefere o discurso retórico, evitando paráfrases, metáforas e imagens abstratas. Seu vocabulário, simples e direto, traduz o cotidiano da ocupação em versos de alto impacto como estes:
Carteira de identidade
(fragmento)
Toma nota!
Sou árabe.
Número da identidade: 50 mil
Número de filhos: oito
E o nono... já chega depois do verão.
E vais te irritar por isso?
Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira
Com meus companheiros de dor
Pra meus oito filhos
O pedaço de pão
As roupas e os livros
Arranco da rocha...
Não mendigo esmolas à tua porta,
Nem me rebaixo
No portão do teu palácio
E vais te irritar por isso?
Este poema – talvez o mais conhecido da literatura palestina do século XX – sugere o diálogo de um habitante dos territórios ocupados com um soldado israelense, em tom de desafio (1). A tradução, assinada por Paulo Farah, professor de língua e literatura árabes na Universidade de São Paulo, integra o volume A terra nos é estreita e outros poemas (São Paulo: Bibliaspa, 2012), primeira coletânea individual de Darwish publicada no Brasil (2), que inaugura um novo patamar nas relações – ainda tímidas – entre a poesia palestina e a brasileira. Em resenha que escrevemos sobre esse livro, publicada na revista eletrônica Mallarmargens (3), afirmamos que a poesia de Darwish emprega imagens simples, extraídas do cotidiano: o girassol, o cavalo, a oliveira, a rosa, o prego, a chuva. A simplicidade do vocabulário, porém, muitas vezes faz referências à história universal, à geografia do Oriente Médio, à tradição literária e religiosa, como ocorre na curiosa composição Como nun na Surata do Clemente, que dialoga com textos do Corão e com imagens mitológicas, como a da fênix grega. Já no livro Salmos, encontramos uma série de poemas sobre Jerusalém, com referências intertextuais aos livros proféticos do Antigo Testamento, em que a cidade, transformada em personagem, fala na primeira pessoa – recurso poético conhecido como prosopopéia. O exílio do povo hebreu relatado nos textos bíblicos é usado por Darwish como metáfora do êxodo e do sofrimento do povo palestino, e o retorno à terra perdida sinaliza uma utopia ao mesmo tempo pessoal e coletiva: é a recuperação do país, que tem sua própria história e cultura, mas também uma reapropriação de sua infância, de suas lembranças, de suas ligações familiares, enfim, de sua vida. Na poesia de Darwish, encontramos com frequência o diálogo, à maneira de um teatro poético, como acontece na composição A eternidade do cacto:
— Para onde me levas, pai?
— Em direção ao vento, meu filho...
Este recurso, que permite a construção de uma pequena cena, com o pano de fundo da história palestina a partir de 1948, recorda por vezes as composições de Bertolt Brecht, embora em Darwish o tom épico esteja quase ausente: é um poeta lírico e elegíaco, que observa o heroísmo presente em pequenas situações, como lavar pratos, fazer café, ouvir o rádio, ações convertidas em formas de resistência: o simples fato de existir, de perpetuar sua língua, seus costumes, sua memória, já faz do palestino um combatente do sionismo, que procura apagar todos os vestígios da existência desse povo, demolindo suas aldeias, mudando os nomes das ruas, reescrevendo a história. A poesia, para Darwish, é uma forma de resistência: é a afirmação de uma identidade, pessoal e coletiva, e a reconstrução de um país pela palavra poética.
A terra nos é estreita foi publicada no Brasil em momento histórico auspicioso: em dezembro de 2012 aconteceu o Fórum Social Mundial Palestina Livre, em Porto Alegre (RS), que reuniu milhares de ativistas de movimentos populares, do Brasil e do exterior, para uma série de debates e atividades culturais relacionadas à solidariedade com o povo palestino. A Bibliaspa, uma das entidades participantes do Fórum, promoveu também o lançamento do romance Noite Grande, do palestino-brasileiro Permínio Asfora, autor ainda pouco conhecido de nossa literatura, que mereceu, no entanto, o elogio de Guimarães Rosa. A revista Zunái – que organizou, em parceria com a Federação Árabe Palestina (Fepal) a mostra fotográfica Palestina: a ferida aberta, para relembrar os 30 anos do massacre de Sabra e Chatila, também esteve no Fórum. Participamos de uma mesa temática sobre a arte de resistência, ao lado do célebre cartunista Latuff, e realizamos a distribuição da plaquete Poemas para a Palestina, publicação semi-artesanal com textos de 15 autores brasileiros, que expressaram, em diferentes estilos – do soneto à elegia, do poema minimalista ao neobarroco – a solidariedade a um povo que busca reencontrar o seu lugar na história. A plaquete, de poucas páginas e pequena tiragem, foi acrescida de novos textos e traduzida para o idioma árabe por Kháled Mahassen, em um volume bilíngue que será publicado em breve pela editora Patuá, de São Paulo – parte da tiragem será enviada à Cisjordânia, por ocasião da III Missão de Solidariedade à Palestina, em 2014. É nossa intenção que essa obra seja uma semente de diálogo e cooperação entre os poetas palestinos e brasileiros. Como breve amostragem do volume, apresentamos aqui algumas das composições:
Jonatas Onofre
Toma nota!
Sou árabe.
Número da identidade: 50 mil
Número de filhos: oito
E o nono... já chega depois do verão.
E vais te irritar por isso?
Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira
Com meus companheiros de dor
Pra meus oito filhos
O pedaço de pão
As roupas e os livros
Arranco da rocha...
Não mendigo esmolas à tua porta,
Nem me rebaixo
No portão do teu palácio
E vais te irritar por isso?
Este poema – talvez o mais conhecido da literatura palestina do século XX – sugere o diálogo de um habitante dos territórios ocupados com um soldado israelense, em tom de desafio (1). A tradução, assinada por Paulo Farah, professor de língua e literatura árabes na Universidade de São Paulo, integra o volume A terra nos é estreita e outros poemas (São Paulo: Bibliaspa, 2012), primeira coletânea individual de Darwish publicada no Brasil (2), que inaugura um novo patamar nas relações – ainda tímidas – entre a poesia palestina e a brasileira. Em resenha que escrevemos sobre esse livro, publicada na revista eletrônica Mallarmargens (3), afirmamos que a poesia de Darwish emprega imagens simples, extraídas do cotidiano: o girassol, o cavalo, a oliveira, a rosa, o prego, a chuva. A simplicidade do vocabulário, porém, muitas vezes faz referências à história universal, à geografia do Oriente Médio, à tradição literária e religiosa, como ocorre na curiosa composição Como nun na Surata do Clemente, que dialoga com textos do Corão e com imagens mitológicas, como a da fênix grega. Já no livro Salmos, encontramos uma série de poemas sobre Jerusalém, com referências intertextuais aos livros proféticos do Antigo Testamento, em que a cidade, transformada em personagem, fala na primeira pessoa – recurso poético conhecido como prosopopéia. O exílio do povo hebreu relatado nos textos bíblicos é usado por Darwish como metáfora do êxodo e do sofrimento do povo palestino, e o retorno à terra perdida sinaliza uma utopia ao mesmo tempo pessoal e coletiva: é a recuperação do país, que tem sua própria história e cultura, mas também uma reapropriação de sua infância, de suas lembranças, de suas ligações familiares, enfim, de sua vida. Na poesia de Darwish, encontramos com frequência o diálogo, à maneira de um teatro poético, como acontece na composição A eternidade do cacto:
— Para onde me levas, pai?
— Em direção ao vento, meu filho...
Este recurso, que permite a construção de uma pequena cena, com o pano de fundo da história palestina a partir de 1948, recorda por vezes as composições de Bertolt Brecht, embora em Darwish o tom épico esteja quase ausente: é um poeta lírico e elegíaco, que observa o heroísmo presente em pequenas situações, como lavar pratos, fazer café, ouvir o rádio, ações convertidas em formas de resistência: o simples fato de existir, de perpetuar sua língua, seus costumes, sua memória, já faz do palestino um combatente do sionismo, que procura apagar todos os vestígios da existência desse povo, demolindo suas aldeias, mudando os nomes das ruas, reescrevendo a história. A poesia, para Darwish, é uma forma de resistência: é a afirmação de uma identidade, pessoal e coletiva, e a reconstrução de um país pela palavra poética.
A terra nos é estreita foi publicada no Brasil em momento histórico auspicioso: em dezembro de 2012 aconteceu o Fórum Social Mundial Palestina Livre, em Porto Alegre (RS), que reuniu milhares de ativistas de movimentos populares, do Brasil e do exterior, para uma série de debates e atividades culturais relacionadas à solidariedade com o povo palestino. A Bibliaspa, uma das entidades participantes do Fórum, promoveu também o lançamento do romance Noite Grande, do palestino-brasileiro Permínio Asfora, autor ainda pouco conhecido de nossa literatura, que mereceu, no entanto, o elogio de Guimarães Rosa. A revista Zunái – que organizou, em parceria com a Federação Árabe Palestina (Fepal) a mostra fotográfica Palestina: a ferida aberta, para relembrar os 30 anos do massacre de Sabra e Chatila, também esteve no Fórum. Participamos de uma mesa temática sobre a arte de resistência, ao lado do célebre cartunista Latuff, e realizamos a distribuição da plaquete Poemas para a Palestina, publicação semi-artesanal com textos de 15 autores brasileiros, que expressaram, em diferentes estilos – do soneto à elegia, do poema minimalista ao neobarroco – a solidariedade a um povo que busca reencontrar o seu lugar na história. A plaquete, de poucas páginas e pequena tiragem, foi acrescida de novos textos e traduzida para o idioma árabe por Kháled Mahassen, em um volume bilíngue que será publicado em breve pela editora Patuá, de São Paulo – parte da tiragem será enviada à Cisjordânia, por ocasião da III Missão de Solidariedade à Palestina, em 2014. É nossa intenção que essa obra seja uma semente de diálogo e cooperação entre os poetas palestinos e brasileiros. Como breve amostragem do volume, apresentamos aqui algumas das composições:
Jonatas Onofre
Faixa de Gaza
Como pode ser
esta veia sem sutura?
Este campo de destroços
em hemorragia?
A ausência das harpas
ainda verga os galhos
do salgueiro.
Mas o sol, imunda fera,
lambe um ossuário
de crianças no deserto.
.....................................
esta veia sem sutura?
Este campo de destroços
em hemorragia?
A ausência das harpas
ainda verga os galhos
do salgueiro.
Mas o sol, imunda fera,
lambe um ossuário
de crianças no deserto.
.....................................
Andréia Carvalho
Judah
ouço teu passo - irmão
manso de sandálias
emplastradas
sondo teus olhos
dois campos pardos
concentrados
e não te escuto o nome
abatido
e não te ouço os cânticos
pelos dentes afiados
branca munição
teu sorriso cúspide
tudo que me cospe
tudo que me cala
não mais te coagulam pontes
no mar vermelho do sangue
teus frutos amordaçados
com a fome de um jardim
suspenso
lamentam a polpa
de tua febre
não te entendo o êxodo
fantástico
na fissura dos mapas
antes da promessa
era terra à vista
teu deserto mágico
antes da mesquita
era o filho do cosmos
era autêntico, o livro branco
de neve
tu te lanças sobre muralhas
inventadas
desenhos bombardeados
e mutilas em seis
o que te deram
em sete
hamurabi coração
dilacerado e cego
oro por ti
escarificado
.....................................
Lígia Dabul
Palestina
Despenca o medo.
A primeira pessoa
atravessa o que
pretendo.
Não
esqueço a fúria
da visita. De novo
a pior de todas
as viagens.
Terrenos
interditos e
barbárie
aberta,
vã,
acusam
o direito da
resposta.
.....................................
Khaled Fayes Mahassen
Gaza da morte
O grito da morte
Gaza
Fronteiras fechada
saídas cerradas
Gaza da morte
Gaza da morte
quem faz a sorte?
A lua é triste,
a vida é triste
o sol! O sol é muito triste,
a Morte!
Ah! A morte é triste.
Gaza da Morte,
Aos olhos do mundo
casa caída
vida destruída,
criança que morre
na gaza da morte
Aos olhos do mundo
ao protesto surdo.
Oh!
O grito forte
da Gaza da morte.
Sorte?
Paz! Que Paz?
Paz com braço forte
com espada que corte
com povo unido
com governo unido
e o mundo decidido
a mudar a sorte
Gaza
Gaza da morte
Gaza da morte
Gaza
Gaza da morte.
Mudará , mudará a sorte!
.....................................
Claudio Daniel
Fósforo branco
Fósforo branco ácido ilumina escombro escárnio nos céus do Líbano.
Talhos retalhos de torsos retorcidos
ossos negrume carcaças.
Corpos enfileirados peles requeimadas
de carne sucata
nos campos de refugiados
em Sabra e Chatila.
Esta é a hora do morticínio.
Farpas fiapos nacos de membros desmembrados
e o aroma escuro escuro da hora lenta lenta de um dia que nunca nunca termina.
Nenhum Kaddish (4) para os filhos da escrava Agar
nenhuma lágrima para Ismael.
Apenas o silêncio de talhos retalhos peles farpas fiapos
e o escuro escuro.
Esta é uma história
exilada da história
que eu e você não devemos saber:
por isso cala o escombro cala o negrume cala a sucata do morticínio.
É preciso calar
a matraca dos jornais;
sim é preciso fechar os livros fechar para sempre os livros
e condenar os mortos à perene desmemória
(em algum sítio
mefistofáustico
de Tel Aviv
que moveu a macabra máquina da morte
a estrela de David
se converte
em nova suástica).
Porém eu e você não nos calamos
eu e você não iremos esquecer
eu e você somos o cedro do Líbano a oliveira da Palestina
o pão fresco nas mesas da Síria.
Houve aqui uma página infame da história
mas eu e você recusamos o silêncio
recusamos o esquecimento
recusamos o perdão.
2013 - dedicado a Emir Mourad
Notas
1) Conforme Paulo Farah, “A poesia e o envolvimento político de Darwish foram uma fonte contínua de conflito com as autoridades. Em 1962, ele foi acusado de incitamento à revolução por recitar um poema sobre Gaza em um festival de poesia. Nos anos seguintes, foi preso diversas vezes”.
2) Convém citar também as notáveis traduções de Darwish realizadas por Michel Sleiman, poeta e professor de língua e literatura árabe na USP, publicadas na revista Zunái, na página http://www.revistazunai.com/editorial/23ed_mahmouddarwish.htm.
3) Artigo publicado na página http://www.mallarmargens.com/2013/01/poeta-palestino-mahmoud-darwish-e.html
4) Prece recitada por um enlutado durante 11 meses após o falecimento de seu pai ou mãe. Em caso de falecimento de um irmão, irmã, esposa, marido ou filho (a) é recitado por apenas um mês.
Claudio Daniel é poeta, curador de literatura e poesia no Centro Cultural São Paulo e editor da revista CULT.