RIO - Mais conhecida no Brasil por seus estudos sobre
gênero, Judith Butler reflete sobre sionismo e identidade em seu último livro
publicado no Brasil, “Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo”.
Na obra, a filósofa pós-estruturalista americana, que causou polêmica ao
defender posições pró-Palestina e apoiar uma campanha internacional de boicote
cultural, econômico e político a Israel, argumenta que é possível, como ela vem
fazendo, criticar as posições do país no conflito Israel-Palestina, e, ao mesmo
tempo, reafirmar a sua própria cultura judaica.
Nos princípios éticos judaicos que fizeram a sua formação,
escreve ela, tenta encontrar ferramentas para “contestar a subjugação colonial
que o sionismo tem exercido sobre o povo palestino”. Para isso, apoia-se em
pensadores judeus e elabora as condições para uma convivência possível entre
israelenses e palestinos.
Em entrevista ao GLOBO por e-mail, Judith fala sobre os
conflitos provocados por suas posições contra as políticas recentes do Estado
de Israel, sobre a sobrevivência do multiculturalismo após a eleição de Trump e
as obrigações morais da coabitação dos povos.
Por que é importante fazer uma crítica judaica ao Estado de
Israel? Que valores judaicos podem ser usados na crítica às políticas
israelenses?
É importante entender que há muitas visões de Israel entre
os judeus. O povo judeu é internamente complexo. Eles vêm de muitos lugares do
mundo e nem sempre se veem representados pelo Estado de Israel. Na verdade, se
pensarmos nos valores judeus de justiça, igualdade e hospitalidade, vemos que o
Estado de Israel é contra princípios chaves da Ética Judaica.
Embora reafirme sua formação judaica, a senhora também
defende a necessidade de ir além do judaísmo. Por quê?
Eu me oponho à ocupação, da mesma forma que muitas pessoas
se opõem à ocupação. A maioria das leis internacionais condena a ocupação,
então minha oposição não é muito diferente da de um não judeu que se opõe à
ocupação como uma violência dos direitos humanos. Mas porque se diz
frequentemente que aqueles que se opõem ao Estado de Israel se opõem ao povo
judeu, é importante saber que o povo judeu também se opõe ao Estado de Israel
em muitos aspectos, clamando por direitos humanos internacionais e direitos
democráticos para todas as pessoas, incluindo os palestinos.
Em 2014, sua palestra sobre Kafka no Museu Judaico de Nova
York foi cancelada após reclamações sobre seu envolvimento com o movimento BDS
(Boicote, Desinvestimento e Sanções contra Israel). Como reagiu à notícia?
Na verdade, eu até tenho tido sorte, já que minhas
participações em eventos são raramente canceladas. Mas está havendo, sim, um
esforço para criminalizar a posição política do BDS. Boicotes são reconhecidos
como instrumentos legais de expressão de pontos de vista políticos, então é uma
perspectiva horrível que se diga às pessoas que assumem este ponto de vista de
que o ponto de vista delas sequer pode ser ouvido. Sabemos que muitas pessoas
tiveram suas participações em eventos canceladas e que há uma ampla campanha
para silenciar quem tem opiniões críticas a Israel.
No livro, a senhora diz que é importante pensar em uma
solução de Estado único para o conflito Israel-Palestina, mesmo que muitos a
considerem impraticável...
Na história do mundo, certamente muitas ideias foram vistas
como impraticáveis: a abolição da escravidão, os direitos iguais para mulheres
e minorias, o fim da guerra... E, ainda assim, aqueles que continuam a luta por
liberdade, igualdade e não violência tiveram que persistir. Se seguíssemos
apenas opções práticas, perderíamos nossos princípios e nossa esperança.
A senhora acredita que, se não pensarmos na coabitação,
nosso mundo empobrecerá radicalmente. Mas o que significa viver com o outro?
Quais são nossas obrigações morais quando coabitamos com aqueles que não
escolhemos?
No fim das guerras ou no fim legal do apartheid, sociedades
são confrontadas com o difícil problema de viver com aqueles que foram seus
inimigos. É uma tarefa difícil viver junto com o ódio duradouro, a raiva, onde
não há amor. Mas se todos afirmarem a obrigação de viverem juntos, então eles
têm essa obrigação em comum, e essa obrigação passa a representar o presente e
o futuro da vida compartilhada.
Como vê o futuro do pluralismo na era Trump?
O movimento emergente de resistência inclui populações
multiétnicas e multirraciais que estão se unindo para combater o racismo, a
xenofobia e a misoginia. Este movimento de resistência representa o futuro da
pluralidade neste momento. Minha crença é que, com o tempo, ele vai ganhar.
A medida poderia ser vista como mais um passo para o
isolamento de Israel na comunidade internacional. Praticamente toda a
comunidade internacional condena a colonização israelense dos Territórios
Palestinos Ocupados (TPO) desde 1967 — ilegal pela lei internacional, com base
na Resolução 242 do Conselho de Segurança e na IV Convenção de Genebra. Israel,
entretanto, tem historicamente empreendido um bem-sucedido processo de
propaganda institucional e limpeza da sua imagem entre importantes setores de
diferentes países e instituições internacionais, forjando um apoio às suas
políticas apesar das críticas que pipocam de todos os lados. O humorista
brasileiro Gregório Duvivier é um importante exemplo do sucesso deste lobby internacional.
No início de janeiro, o ator viajou a Israel à convite da
Universidade Hebraica de Jerusalém, uma instituição que tem em seus pilares
violações contra os palestinos. A universidade fica a pouco metros do bairro de
Silwan, principal local de judaização em andamento na cidade, onde
assentamentos judeus são erguidos ao redor de casas palestinas: já são 2.800
colonos ilegais vivendo entre cerca de 100 mil palestinos, segundo a ONG israelense Btselem. O crescimento desses colonos, entre 2009 e 2016, foi de
70%. Nesse período, 68 famílias palestinas foram expulsas de Silwan, Sheik
Jarrah e do quarteirão muçulmano da Cidade Velha. Algo que pode passar batido
diante do olhar de um turista de primeira viagem.
O convite a Duvivier foi para o seminário “Brasil, Israel e
Palestina: política, religião e a busca pela paz”, organizado pelo professor
James Green, brasilianista da Brown University, e Michel Gherman, docente da
Hebraica e coordenador do Centro de Estudos Judaicos da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. A viagem do humorista se insere em uma agenda específica, que a acadêmica Berenice Bento chamou em um recente artigo de “redwashing”: um tipo
de discurso de “esquerda” que serve para limpar a imagem de Israel,
posicionando o país como a única democracia liberal do Oriente Médio,
respeitadora dos direitos humanos, como a igualdade para mulheres e
homossexuais. Tal como Bento descreve, aqueles que praticam o “redwashing”
terminam não apenas sendo cúmplices da expulsão e segregação dos palestinos,
como são parte estruturante do projeto sionista, que busca estabelecer uma
ampla maioria judaica sobre a terra.
Duvivier não é o primeiro garoto propaganda do campo
progressista israelense no Brasil. Um ano antes, em janeiro de 2016, o deputado
federal Jean Wyllis (Psol), defensor dos direitos da comunidade LGBT, da
descriminalização da maconha e de outras pautas ligadas ao campo progressista,
provocou barulho nas redes sociais e entre a esquerda brasileira — inclusive dentro do seu partido — por fazer o mesmo trajeto. Estes são apenas dois
exemplos de um antigo e bem sucedido esforço de propaganda e lobby israelense,
conhecida como hasbará (“explicação”, em hebraico).
UM HUMORISTA NA PALESTINA
Duvivier é famoso por vídeos de humor no canal do Youtube
“Porta dos Fundos” que colocam o dedo na ferida, além de colunas no jornal
Folha de S. Paulo em que defende pautas progressistas e ataca políticos —
muitas vezes sendo acusado de extremismo por seus detratores. O humorista,
entretanto, adotou uma abordagem mais low profile durante visita ao Oriente
Médio, relativizando crimes e consensos internacionais em torno da questão
palestina.
Segundo Guilherme Cohen, candidato a vereador do Rio de
Janeiro pelo Psol em 2016 e cicerone de Wyllis e Duvivier na Terra Santa, o
humorista teria rapidamente compreendido a complexidade da questão
Palestina/Israel e fugido de binarismo em seu discurso na Universidade
Hebraica. “O grande problema pra mim é quando você não vê pessoas e passa a ver
somente bandeiras ou religiões. Quando você começa a enxergar pessoas, você
entende que não é apenas um país, são 7 milhões de países, pois cada cidadão
têm sua própria narrativa”, disse Duvivier na palestra.
As postagens de Duvivier em sua conta no Instagram são ainda
mais reveladoras da sua adesão à agenda da nova esquerda sionista.
Um post de 13 de janeiro mostra que o humorista esteve em
Bethlehem, cidade palestina nos TPO, diante do Muro (que separa e anexa terras
palestinas, construído a partir de 2002), um monumento às práticas políticas
mais recentes de colonização. Diante da estrutura de concreto armado de oito
metros de altura, ele escreve na legenda da foto: “Israel-Palestine border”
(fronteira Israel-Palestina). Alguém da comitiva deve ter esquecido de avisar a
Duvivier que atrás daquele Muro não havia Israel, mas os vilarejos palestinos
de Al Walaja e Husan, que repousam “presos” entre a Israel reconhecida pela
comunidade internacional e o Muro. Em outro post, em que se lia pichado no Muro
“Make hummus not walls” (faça húmus, não muros), ele escreveu “Coexist”
(coexista). Talvez fosse uma piada.
Ainda em Bethlehem, Duvivier foi apresentado ao palestino
Jamil. Cohen traz um relato do encontro: “Ele nos contou sua história de vida,
que é marcada por muita violência, tragédias e luta pela paz. Jamil nos disse
que participou da primeira intifada, sendo um dos que mais jogava pedras nos
soldados israelenses. Viu seu irmão de apenas 14 anos ser morto por um soldado.
Viu muitos amigos morrerem nesse conflito tão terrível. Ele tinha tudo para ter
raiva, ódio e todo o sentimento de vingança em relação aos Israelenses. Mas
não! Um acontecimento mudou toda a sua visão de mundo. Viu pela televisão uma
notícia sobre um atentado terrorista de um grupo palestino em Jerusalém, que
matou muitas crianças israelenses. Quando sua mãe começou a chorar, ele
perguntou:
– Por que você chora, mãe? Isso foi do lado de lá… Os mortos
não são palestinos, mas judeus – ele questionou.
– Choro porque outras mães perderam seus filhos pela
violência, como eu. A dor é a mesma – respondeu ela.
E arrematou: “Jamil transformou tudo isso na luta pela paz!
Hoje participa de diversos movimentos com Israelenses e Palestinos que lutam
contra a ocupação e pela criação de 2 estados para 2 povos. Nosso encontro
terminou com Jamil dizendo: ‘Não há outro caminho senão a paz’”.
Duvivier concordou. “Esse cara é meu herói. Conheci Belém
com o militante palestino Jamil Qassas, que tem buscado alternativas para a
paz. Procurem saber.” Em outro post, poucos dias depois, o humorista
complementa: “O pior conflito, o mais difícil de resolver, não parece ser entre
judeus e palestinos, mas entre seculares e fundamentalistas. A paz não
interessa a quem vive de disseminar o medo. Qualquer semelhança com o Brasil
não será mera coincidência.”
Como recomendado, fomos procurar saber mais. A atitude de
Jamil pode ser vista como nobre, como uma saída para existir alienado de tanto
sofrimento, da dor que transforma alguém em um monstro. O tema da resistência
na sociedade palestina, no entanto, é um debate delicado e gira em torno da
legitimidade do uso da violência. Qual a forma que pode fazer mudar as relações
de poder para que o conjunto de Palestina/Israel possa ser menos autoritário e
desigual diante do projeto do Estado judeu? Como os crimes de Israel – que trazem
debates como o direito de retorno e a restituição de terra – podem ser
expiados? Isso depende de como a pessoa de fora olha para os muros, os postos
de controle e uma pesada presença militar, seja o cenário os morros do Rio de
Janeiro ou as montanhas da Palestina.
A comitiva de Duvivier poderia ter recorrido à lei
internacional para prover uma melhor explicação para a resistência palestina.
Diz a resolução da ONU, de 29 de novembro de 1978, com o título “Importância da
realização universal dos direitos dos povos à autodeterminação e da garantia
urgente de independência para países coloniais e povos de garantia efetiva e
observância de direitos humanos”. No seu item 2, “reafirma a legitimidade da
luta dos povos por independência, integridade territorial, unidade nacional e
liberação de dominação colonial e estrangeira e de ocupação estrangeira por
todos os meios disponíveis, particularmente a luta armada”.
Há uma diferença entre luta armada e terrorismo, entre
resistência e crimes de guerra contra civis, mas ao aceitar as molduras
(físicas e ideológicas) traçadas pelo establishment de esquerda israelense,
Duvivier termina por condenar a resistência palestina, colocando-a na mesma
balança que os crimes coloniais israelenses. E mais: coaduna com a coexistência
sem responsabilização que silencia os últimos cem anos de gradual
desaparecimento da Palestina.
QUANDO ESQUERDA E DIREITA SE ENCONTRAM
As viagens de Duvivier e Wyllis são parte de um esforço
coordenado de propaganda de militantes sionistas ligados ao campo da esquerda
no Brasil e em Israel, como o professor Michel Gherman e o militante do Psol
Guilherme Cohen, e que conta com o apoio do establishment sionista no Brasil,
como a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (Fierj), movimentos
sionistas juvenis, partidos políticos e instituições univesitárias. Já
embarcaram neste avião o secretário-executivo da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) e ex-presidente da Comissão da Anistia do Brasil, Paulo
Abrão (que defendeu Wyllis publicamente durante o entrevero público de sua viagem) e o professor de Relações Internacionais da UFRJ e comentarista da
Globo News, Fernando Brancoli.
O discurso da esquerda sionista mistura em uma mesma
narrativa a defesa de medidas como o Muro da Cisjordânia, a colonização dos TPO
e o interminável processo de paz com elogios às liberdades políticas e
econômicas que gozam os judeus israelenses e críticas ao governo Netanyahu,
numa espécie de mea culpa. Vale dizer que, embora divergentes entre si em
questões econômicas e sociais, a esquerda e a direita sionista não são muitos
diferentes aos olhos de um palestino. Desde o início da colonização sionista da
Palestina, no final do século XIX, ambos os campos direcionaram as suas
políticas para a realização da visão hegemônica sionista sobre o território
palestino: a constituição de um estado-nação majoritariamente judaico do qual
os nativos palestinos não fariam parte.
A força do lobby israelense é motivo de controversa global,
sendo alvo de estudos acadêmicos (o livro The Israel Lobby, dos americanos John
Mearsheimer e Stephen Walt, aborda a influência israelense nos EUA — link para o prefácio em inglês) e de reportagens investigativas (uma recente série da Al Jazeera mostra a agressiva atuação de diplomatas israelenses no Reino Unido).
Este instrumento de propaganda, entretanto, não é um expediente exclusivo dos
liberais, sendo extensamente utilizado pelos conservadores israelenses.
No Brasil, os esforços de propaganda da direita sionista tem
encontrado apoio principalmente entre os setores evangélicos, como o pastor
Marcelo Crivella (PRB-RJ), prefeito do Rio de Janeiro, e o deputado federal
Jair Bolsonaro (PSC-RJ). As igrejas pentecostais ao redor do mundo
tradicionalmente veem os judeus como os legítimos habitantes da bíblica Terra
de Israel e são importantes apoiadores das políticas do moderno Estado de
Israel.
Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, é
talvez o maior defensor dos interesses de Israel entre os políticos
brasileiros. É de sua autoria o projeto de lei que levou à criação do Acordo de
Livre Comércio Mercosul-Israel, em 2009, e também o que criou o “Dia da Amizade
Brasil-Israel”. O bispo ainda empresta a sua voz para a música “Sou Israel”,
que tem mais de 300 mil visualizações no canal do Templo de Salomão no Youtube.
O mandatário carioca já esteve em Israel algumas dúzias de
vezes, chegando a morar em um kibutz em uma delas. “Brasil e Israel tem tudo a
ver”, afirmou durante visita à Fierj na campanha para a prefeitura do ano passado. Ele defende uma maior aproximação comercial e política entre os
países, principalmente na importação de técnicas e tecnologias israelenses em
agricultura e segurança. Logo após ser eleito prefeito do Rio de Janeiro,
Crivella viajou à Israel. De lá, voltou com a opinião de que o Rio “deveria sermurado como Jerusalém” para resolver seus episódios de violência.
Assim, dentro de um campo que, pouco a pouco, ignora os
pontos que poderiam levar a uma resolução da questão palestina, consolida-se um
discurso que se afasta de qualquer processo de paz, fazendo marchar a
colonização que gradualmente quer apagar, ou limpar, como diria o historiador
Illan Pappé, a Palestina.