Um professor norte-americano disse-me, certa vez, que “muitos, no mundo islâmico, pensam que os EUA não crêem em direitos humanos. Estão errados. Os EUA crêem em direitos humanos, sim. O problema é o que os EUA entendem por ‘humano’.”
Em outras palavras, a definição de “humano” nos EUA não é a mesma que opera no resto do mundo. Essa não é característica exclusiva dos norte-americanos; cada cultura enfrenta de um determinado modo o desafio de ampliar os próprios limites culturais e universalizar suas normas morais.
Mas dentre todas as culturas e ideologias humanas, o caso israelense é único, campeão absoluto de dois pesos e duas medidas. Criminalidade travestida de nobreza moral e agressão travestida de vitimismo são dois traços sempre presentes na realidade e no discurso dos israelenses.
A personalidade de Israel
A dualidade da “ênfase insistente que Israel dá ao próprio isolamento e à ambição de ser única, sem similar no mundo; a insistência em mostrar-se ao mesmo tempo como vítima e heroína”, como Tony Judt escreveu no Haaretz há alguns anos, reflete a fragilidade e a auto-referência, o autismo autocentrado na personalidade de Israel. Não é traço, infelizmente, exclusivo da elite política israelense, mas espalha-se pelos sionistas de todo o mundo que apóiam Israel, os mesmos que, como o escritor Elie Wiesel e o filósofo Bernard-Henri Lévy, criaram para eles mesmos imagens humanísticas e estéticas.
Sou dos que se emocionaram profundamente ao ver a descrição das atrocidades cometidas durante o Holocausto e que se lêem no livro Night de Elie Wiesel. Lá se vê a experiência do autor e de seu pai de processo terrível que viola a vida e degrada a dignidade humana.
Mas incomodou-me muito o tom de autoelogio e autojustificação que se lê em Dawn, obra de ficção do mesmo Wiesel, quando escreve: “O mandamento ‘Não matarás’ foi entregue no pico de uma das montanhas aqui na Palestina, e fomos os únicos a respeitá-lo. Mas, apesar disso, nos dias, semanas, meses que virão, vocês só terão uma meta a alcançar: matar todos os que nos converteram em matadores.”
Quando o juiz sul-africano Richard Goldstone expôs os crimes que os israelenses cometeram em Gaza, Wiesel disse que teria havido “crime contra o povo judeu”. Aí está: é uso imoral de atrocidades passadas, pra inventar justificativa moral para brutalidades atuais e opressão atual.
Além do mais, podem-se propor duas perguntas. Primeira, que direito exclusivo Wiesel reivindica para si, ele que nasceu de pai romeno e mãe húngara e que de nenhum modo estaria racial ou historicamente representado no Monte Sinai, no momento da entrega dos Mandamentos, em pleno coração de um deserto no Oriente Médio? Segunda, por que regra moral ou legal os palestinos de hoje seriam responsáveis por erros de alemães de ontem?
Mitos interessados, de autojustificação
O pior dessa linguagem de hipocrisia, contudo, apareceu no artigo assinado por Bernard-Henri Lévy sobre a agressão israelense contra a Flotilha da Paz em Gaza, publicado no Haaretz dia 8/6/2010.
Lévy apresenta-se em termos autoglorificantes, como “alguém que se orgulha de ter ajudado a conceber, com outros, esse tipo de ação simbólica (um barco para o Vietnã; a marcha pela sobrevivência do Cambodia, em 1979)...”.
No que tenha a ver com o suplício de Gaza, contudo, Lévy descarta a tragédia e simplesmente nega que haja o bloqueio israelense de Gaza e os ataques a alvos sitiados, e refere-se a “o governo fascislâmico de Ismail Haniya” e “a gangue islâmica que tomou o poder pela força há três anos.”.
Assim, sem se envergonhar, faz sumir o grande esforço de um grupo multiétnico, multinacional e de várias religiões, de líderes humanistas e pacifistas que se reuniram na Flotilha da Paz.
Não bastasse, não há qualquer objetividade na crítica e o autor nada diz das gangues fascisionistas – para recolher a terminologia dele – que agressivamente invadiram terra palestina há 60 anos, arrancaram de lá a população autóctone e a cercaram em novos Auschwitz e Buchenwald – os campos de concentração de Gaza e da Cisjordânia.
De fato, para quem ponha seus desejos autocentrados e egoístas acima dos princípios da justiça e da compaixão, os seus próprios mitos interesseiros, de autojustificação, são muito melhores, aos olhos deles mesmos, que a feia verdade que aí está.
Intelectuais judeus humanistas, como o professor Tony Judt e o músico Gilad Atzmon deploram a autoindulgência e a falta de maturidade dos israelenses. Judt escreve: “Israel ainda se comporta como adolescente: consumida na autoconfiança delirante de que seria única, certa de que é única no mundo; certa de que ninguém ‘a compreende’ e de que o mundo está ‘contra ela’; plena de autoestima ferida, rápida no ofender-se e rápida no ofender o próximo (...), certa de que pode fazer o que bem entenda, que suas ações não geram consequências e de que é imortal.”
Atzmon escreve: “Lidamos aqui com nação seriamente perturbada, imatura. Lidamos com uma criança narcisicamente autoapaixonada (...). Por mais que os israelenses se amem e amem uma infância ilusional fantasmática, quanto mais firmemente acreditarem na própria inocência, mais temerão que o mundo exterior seja tão sádico quanto os próprios israelenses provaram ser. A esse tipo de comportamento chama-se ‘projeção’. Os judeus têm boas razões para viverem apavorados. Seu Estado nacional é entidade genocida.”
‘Holocaustianidade’
O que mais desaponta, contudo, não é nem o narcisismo nem a empáfia dos sionistas. O que mais desaponta é a aceitação e o apoio que recebem do Ocidente, para sua atitude –que se compreende melhor se a situamos no contexto histórico.
O principal substrato teórico para a aceitação, na cultura ocidental, do excepcionalismo de Israel é uma variante – sobretudo no ramo protestante da cristandade –, da encarnação do Deus cristão na pessoa de Jesus, para uma nova encarnação de Deus, dessa vez nos judeus como povo, o “povo escolhido”.
Essa tendência começou com Martim Lutero (1483-1546) que reduziu a cristandade, teologicamente e moralmente, ao fator judeu, na pequena epístola “De Jesus Cristo nascido Judeu”. Lutero escreveu, nessa epístola: “Quando nos sentirmos inclinados a nos orgulhar de nossa posição, relembremos que somos gentios, e só os judeus são da linhagem de Cristo. Somos estranhos, não somos parentes de sangue. Os judeus são parentes de sangue, primos e irmãos de nosso Senhor.”
Através desse Lutero – o qual, paradoxalmente, foi aplicado antisemita – inadvertidamente se abriu uma janela teológica, a qual, séculos mais tarde, permitiria que o ‘culto de Israel’, como observou Grace Halsell, escritora norte-americana, substituísse a cristandade em quase todos os ramos da religião protestante, sobretudo entre os Batistas norte-americanos. Afinal, o que fazem hoje não passa de implementação literal da deificação, operada por Lutero, dos judeus.
A professora Yvonne Haddad do Centro para o Entendimento entre Muçulmanos e Cristãos da Georgetown University chama essa heresia de “holocaustianidade”. Nessa nova heresia estão as raízes do excepcionalismo israelense.
Trivializar o Holocausto
O professor Judt escreve que “O que Israel perdeu pela ocupação continuada de terras árabes é ganho, por outro lado, mediante a íntima identificação com a memória recuperada de judeus europeus mortos.” Mas o autor sabe muito bem que a memória dos mortos é a pior justificação moral que há, se se matam inocentes: “Aos olhos do mundo que observa, o fato de que o bisavô de um soldado judeu tenha morrido em Treblinka não obriga ninguém a perdoar o soldado bisneto, se abusa de uma mulher palestina que espera para atravessar um posto de controle de Israel. Não basta dizer ‘Lembrem Auschwitz’. Essa não é resposta aceitável.”
Pois essa é, precisamente, o tipo de justificação moral que Israel oferece ao mundo, hoje.
Quando um conselheiro de Shimon Peres, presidente de Israel, tentou atacar a resposta de Helen Thomas, que dissera que os israelenses deveriam “ir embora, voltem [para] a Polônia, a Alemanha!”, a única coisa que achou para dizer foi lembrar a ela que seus parentes haviam sido mortos na Polônia e na Alemanha há mais de meio século, como se essa fosse razão suficiente para explicar que os palestinos sejam postos a morrer de fome, ou para matar ativistas humanistas pacifistas em águas internacionais, hoje. Afinal, o conselheiro do presidente de Israel apenas confirmou o que Helen Thomas havia dito: “Vocês são europeus, não são daqui.”
Assim, a memória do Holocausto, a memória de uma tragédia humana gigantesca, sem limites, está sendo trivializada pela criminalidade dos israelenses.
Peso moral
Analistas políticos e políticos já perceberam que Israel vai-se convertendo em peso e ameaça estratégicos para os EUA. De fato, sempre foi um peso estratégico. Mas o problema é muito mais profundo que isso. Israel está-se tornando também peso moral que já ninguém com consciência ética suporta carregar, inclusive judeus, claro, para os quais a dignidade humana e a justiça social sejam valores a defender.
Muitos que dedicaram a vida a promover a causa sionista começam a ver hoje o paradoxo moral que se oculta no projeto sionista. Henry Siegman, escritor alemão-norte-americano que trabalhou como diretor executivo do Congresso Americano-judeu de 1978 a 1994, escreveu no jornal Haaretz de 11/6/2010: “Um milhão e meio de civis foram forçados a viver numa prisão a céu aberto, em condições desumanas, já faz mais de três anos. Diferente do que aconteceu nos anos de Hitler, hoje não são judeus. Hoje são palestinos. Os carcereiros, inacreditavelmente, são sobreviventes do Holocausto ou descendentes deles.”
Todos os seres humanos decentes têm, hoje, de defender os palestinos oprimidos, contra o opressor israelense. Os árabes oprimidos da Palestina (muçulmanos e cristãos) prestam, com seu sofrimento, grande serviço a toda a humanidade: obrigam a ver a ideologia israelense de supremacia, a mais autocentrada ideologia que há no planeta – uma ideologia israelense de violência e terror, exibida ao mundo em manto banhado em sangue.
http://english.aljazeera.net/focus/2010/06/20106146372913751.html