É aqui que uma revolução árabe tem início; em um fim de mundo. Se o mundo moderno encontra-se dividido entre centros dinâmicos e uma periferia estática, Sidi Bouzid se encaixa perfeitamente nesta última. A cidade nunca apareceu sequer na previsão nacional do tempo.
A centelha foi um desentendimento em 17 de dezembro de 2010. Ela envolveu um jovem vendedor de frutas e verduras chamado Mohamed Bouazizi e uma policial bem mais velha do que ele chamada Faida Hamdy. O que exatamente ocorreu entre os dois – quem esbofeteou ou cuspiu em quem, que insultos foram usados – é algo que já entrou para o reino do mito revolucionário.
Pouco depois – este fato pelo menos não é contestado – Bouazizi colocou fogo no próprio corpo em frente ao moderno prédio do governo, onde os manifestantes atualmente se aglomeram em torno de retratos do mártir. Bouazizi viveria mais 18 dias. Àquela altura, uma ditadura árabe com um pedigree de 53 anos estava tremendo convulsivamente. Dentro de mais dez dias, ela desmoronou, naquela que talvez tenha sido a primeira revolução da história que não teve um líder.
Ou talvez o líder estivesse longe: Mark Zuckerberg, o criador do Facebook. O veículo da revolução foi a juventude da Tunísia, capaz de usar o Facebook para comunicação instantânea e dessa forma inspirar os seus pais.
Ander Colding-Jorgensen, um psicólogo dinamarquês, realizou uma experiência em 2009 na qual divulgou a notícia de que a Fonte Stork de Copenhague estava prestes a ser demolida e criou um grupo no Facebook para salvá-la. A ameaça era fictícia, mas o grupo logo passou a contar com dois novos membros por minuto.
A revolução tunisiana foi uma experiência similar, mas turbinada. Fidel Castro passou anos preparando a sua revolução na Sierra Maestra, no interior cubano; o Facebook levou a insurreição do interior para a capital tunisiana em 28 dias.
Como foi que uma briga por causa de peras e maçãs em um local desimportante e obscuro transformou-se em uma rebelião nacional? Nenhum jornal ou rede de televisão tunisiana cobriu o acontecimento. O Ocidente estava preocupado com o Natal. A Tunísia era o Luxemburgo do mundo árabe: lá nada jamais acontecia. A autoimolação de um garoto pobre jamais poderia quebrar um muro de silêncio. Ou pelo menos era essa a impressão que se tinha.
Naquele dia, 17 de dezembro, doze membros da furiosa família Bouazizi reuniram-se em frente ao prédio do governo. Eles sacudiram o portão e exigiram que o governador saísse para vê-los.
“A nossa família é capaz de aceitar tudo, menos a humilhação”, me disse Samia Bouazizi, a irmã do rapaz morto, sentada dentro de uma casa pequenina, iluminada por uma lâmpada fraca, perto de um cocho onde um carneiro come.
Humilhação é uma palavra importante nessa história. Foi o “hogra”, ou o desdém, da cleptocracia do ditador que acabaria unindo no ciberespaço uma população árabe.
Os protestos logo aumentaram. Usando telefones celulares, os participantes colocavam imagens em páginas do Facebook.
“A minha filha, Ons, que tem 16 anos de idade, passou a me mostrar o que estava acontecendo”, conta Hichem Saad, um empresário de Túnis.
A Al-Jazeera, a rede de televisão do mundo árabe, foi alertada através do Facebook. Nesse ínterim, Bouazizi, que não tinha sequer o segundo grau, metamorfoseou-se no ciberespaço em um frustrado indivíduo recém-formado na universidade: isso repercutiu em uma nação na qual tantas pessoas com diploma universitário estão desempregadas. Esse mito correu o mundo. Informações que se movem tão rapidamente assim são inspiradas pelos fatos, em vez de se ancorarem neles.
Quando Zine el-Abidine Ben Ali, o ditador que acaba de ser deposto, falou à nação, conforme faria três vezes, a fúria transmitida pelo Facebook foi a resposta. Ben Ali podia ter 1,5 milhão de membros no seu partido fantoche; mas ele em breve se deparou com dois milhões de usuários do Facebook.
A essa altura dizia-se que Faida Hamdy, a policial, havia esbofeteado Bouazizi. Talvez ela tenha feito isso. O primo dela me disse que foi o rapaz que esbofeteou Hamdy: mais fatos fugazes bons demais para se confirmar.
Hisham Ben Khamsa, que organiza um festival de cinema norte-americano em Túnis, observou a cena na companhia dos seus filhos quando Ben Ali fez o seu último discurso em 13 de janeiro. Agora, a fúria confrontadora do homem forte do país tinha desaparecido. Assim como o xá do Irã em 1978 – tarde demais – ele havia “entendido”. Ele sentiu a dor do povo. O preço do pão seria reduzido.
“Ele não entendeu nada”, me disse Ben Khamsa. “Tudo o que aconteceu dizia respeito a dignidade, e não a pão. Ele estava em estado de autismo político terminal. Imediatamente, todos faziam comentários sobre o discurso no Facebook”.
Na noite seguinte, Ben Ali fugiu, após passar 23 anos no poder. Menos do que o seu predecessor, que governou durante 30 anos. Dizem que a idade média de um tunisiano é de “um ditador e meio”. Esse pesadelo acabou.
Agora o novo ministro da Juventude, um ex-blogueiro de 33 anos de idade, manda mensagens via Twitter das suas reuniões de gabinete. Todos estão falando onde outrora todo mundo fazia silêncio. “Toda nação árabe está aguardando o seu Bouazizi”, me disse a irmã dele.
Algumas observações: primeiro, de acordo com uma antiga máxima, no mundo árabe as duas únicas opções possíveis são ditadores ou fundamentalistas islâmicos porque estas são as duas forças organizadoras. Não, as comunidades online são capazes de se organizar e enfrentar o poder estabelecido.
Segundo, essas comunidades não têm nenhuma ideologia formal, mas a luta delas visa a transformar humilhação em autoestima.
Terceiro, as rebeliões no ciberespaço têm resultados imprevisíveis: o Irã pairou sobre o fio da navalha em 2009; o regime da Tunísia caiu em 2011. Em ambas as sociedades o abismo que separa as autoridades e as sociedades de jovens conectados pela Internet é enorme. A diferença está provavelmente no grau de brutalidade sustentada que uma ditadura é capaz manter.
Quarto, a liberdade da Internet não é nenhuma panaceia. Regimes autoritários podem usá-la para identificar dissidentes; eles podem tentar suprimir o Facebook. Mas ela dá poder aos reprimidos, humilhados e distantes – sendo, portanto uma ameaça ao decadente status quo árabe.
O que aconteceu na Tunísia foi uma revolução Facebook. Mas eu prefiro usar uma expressão que ouvi em Túnis: “A Revolução da Dignidade”.
(Roger Cohen escreve a coluna “The Globalist” para o “International Herald Tribune”).
Tradução: UOL
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Um movimento de contestação ganha o Egito
Os manifestantes reivindicam o exemplo tunisiano e enfrentam o regime do presidente Mubarak
É aqui que uma revolução árabe tem início; em um fim de mundo. Se o mundo moderno encontra-se dividido entre centros dinâmicos e uma periferia estática, Sidi Bouzid se encaixa perfeitamente nesta última. A cidade nunca apareceu sequer na previsão nacional do tempo.
A centelha foi um desentendimento em 17 de dezembro de 2010. Ela envolveu um jovem vendedor de frutas e verduras chamado Mohamed Bouazizi e uma policial bem mais velha do que ele chamada Faida Hamdy. O que exatamente ocorreu entre os dois – quem esbofeteou ou cuspiu em quem, que insultos foram usados – é algo que já entrou para o reino do mito revolucionário.
Pouco depois – este fato pelo menos não é contestado – Bouazizi colocou fogo no próprio corpo em frente ao moderno prédio do governo, onde os manifestantes atualmente se aglomeram em torno de retratos do mártir. Bouazizi viveria mais 18 dias. Àquela altura, uma ditadura árabe com um pedigree de 53 anos estava tremendo convulsivamente. Dentro de mais dez dias, ela desmoronou, naquela que talvez tenha sido a primeira revolução da história que não teve um líder.
Ou talvez o líder estivesse longe: Mark Zuckerberg, o criador do Facebook. O veículo da revolução foi a juventude da Tunísia, capaz de usar o Facebook para comunicação instantânea e dessa forma inspirar os seus pais.
Ander Colding-Jorgensen, um psicólogo dinamarquês, realizou uma experiência em 2009 na qual divulgou a notícia de que a Fonte Stork de Copenhague estava prestes a ser demolida e criou um grupo no Facebook para salvá-la. A ameaça era fictícia, mas o grupo logo passou a contar com dois novos membros por minuto.
A revolução tunisiana foi uma experiência similar, mas turbinada. Fidel Castro passou anos preparando a sua revolução na Sierra Maestra, no interior cubano; o Facebook levou a insurreição do interior para a capital tunisiana em 28 dias.
Como foi que uma briga por causa de peras e maçãs em um local desimportante e obscuro transformou-se em uma rebelião nacional? Nenhum jornal ou rede de televisão tunisiana cobriu o acontecimento. O Ocidente estava preocupado com o Natal. A Tunísia era o Luxemburgo do mundo árabe: lá nada jamais acontecia. A autoimolação de um garoto pobre jamais poderia quebrar um muro de silêncio. Ou pelo menos era essa a impressão que se tinha.
Naquele dia, 17 de dezembro, doze membros da furiosa família Bouazizi reuniram-se em frente ao prédio do governo. Eles sacudiram o portão e exigiram que o governador saísse para vê-los.
“A nossa família é capaz de aceitar tudo, menos a humilhação”, me disse Samia Bouazizi, a irmã do rapaz morto, sentada dentro de uma casa pequenina, iluminada por uma lâmpada fraca, perto de um cocho onde um carneiro come.
Humilhação é uma palavra importante nessa história. Foi o “hogra”, ou o desdém, da cleptocracia do ditador que acabaria unindo no ciberespaço uma população árabe.
Os protestos logo aumentaram. Usando telefones celulares, os participantes colocavam imagens em páginas do Facebook.
“A minha filha, Ons, que tem 16 anos de idade, passou a me mostrar o que estava acontecendo”, conta Hichem Saad, um empresário de Túnis.
A Al-Jazeera, a rede de televisão do mundo árabe, foi alertada através do Facebook. Nesse ínterim, Bouazizi, que não tinha sequer o segundo grau, metamorfoseou-se no ciberespaço em um frustrado indivíduo recém-formado na universidade: isso repercutiu em uma nação na qual tantas pessoas com diploma universitário estão desempregadas. Esse mito correu o mundo. Informações que se movem tão rapidamente assim são inspiradas pelos fatos, em vez de se ancorarem neles.
Quando Zine el-Abidine Ben Ali, o ditador que acaba de ser deposto, falou à nação, conforme faria três vezes, a fúria transmitida pelo Facebook foi a resposta. Ben Ali podia ter 1,5 milhão de membros no seu partido fantoche; mas ele em breve se deparou com dois milhões de usuários do Facebook.
A essa altura dizia-se que Faida Hamdy, a policial, havia esbofeteado Bouazizi. Talvez ela tenha feito isso. O primo dela me disse que foi o rapaz que esbofeteou Hamdy: mais fatos fugazes bons demais para se confirmar.
Hisham Ben Khamsa, que organiza um festival de cinema norte-americano em Túnis, observou a cena na companhia dos seus filhos quando Ben Ali fez o seu último discurso em 13 de janeiro. Agora, a fúria confrontadora do homem forte do país tinha desaparecido. Assim como o xá do Irã em 1978 – tarde demais – ele havia “entendido”. Ele sentiu a dor do povo. O preço do pão seria reduzido.
“Ele não entendeu nada”, me disse Ben Khamsa. “Tudo o que aconteceu dizia respeito a dignidade, e não a pão. Ele estava em estado de autismo político terminal. Imediatamente, todos faziam comentários sobre o discurso no Facebook”.
Na noite seguinte, Ben Ali fugiu, após passar 23 anos no poder. Menos do que o seu predecessor, que governou durante 30 anos. Dizem que a idade média de um tunisiano é de “um ditador e meio”. Esse pesadelo acabou.
Agora o novo ministro da Juventude, um ex-blogueiro de 33 anos de idade, manda mensagens via Twitter das suas reuniões de gabinete. Todos estão falando onde outrora todo mundo fazia silêncio. “Toda nação árabe está aguardando o seu Bouazizi”, me disse a irmã dele.
Algumas observações: primeiro, de acordo com uma antiga máxima, no mundo árabe as duas únicas opções possíveis são ditadores ou fundamentalistas islâmicos porque estas são as duas forças organizadoras. Não, as comunidades online são capazes de se organizar e enfrentar o poder estabelecido.
Segundo, essas comunidades não têm nenhuma ideologia formal, mas a luta delas visa a transformar humilhação em autoestima.
Terceiro, as rebeliões no ciberespaço têm resultados imprevisíveis: o Irã pairou sobre o fio da navalha em 2009; o regime da Tunísia caiu em 2011. Em ambas as sociedades o abismo que separa as autoridades e as sociedades de jovens conectados pela Internet é enorme. A diferença está provavelmente no grau de brutalidade sustentada que uma ditadura é capaz manter.
Quarto, a liberdade da Internet não é nenhuma panaceia. Regimes autoritários podem usá-la para identificar dissidentes; eles podem tentar suprimir o Facebook. Mas ela dá poder aos reprimidos, humilhados e distantes – sendo, portanto uma ameaça ao decadente status quo árabe.
O que aconteceu na Tunísia foi uma revolução Facebook. Mas eu prefiro usar uma expressão que ouvi em Túnis: “A Revolução da Dignidade”.
(Roger Cohen escreve a coluna “The Globalist” para o “International Herald Tribune”).
Tradução: UOL
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2011/01/27/um-movimento-de-contestacao-ganha-o-egito.jhtm
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Jovens egípcios encabeçam a revolta, deixando líderes para trás
Nuria Tesón
No Cairo (Egito)
27/01/2011
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
No Cairo (Egito)
27/01/2011
Milhares de egípcios desafiaram na quarta-feira a proibição expressa do governo, que havia advertido que não permitiria protestos, e voltaram a se lançar às ruas para pedir o fim do regime de Hosni Mubarak. A rede social Facebook foi novamente a ferramenta que os jovens do país empregaram para se mobilizar em várias localidades. Apenas algumas horas depois de protagonizar as maiores manifestações dos últimos 30 anos, a mensagem corria de terminal em terminal: "Filhos do Egito, tomem as ruas".
Desse modo, o grupo de oposição Jovens de 6 de Abril, um dos organizadores, animava a não perder o espírito que havia inflamado durante a jornada anterior, que denominaram "dia da ira". E assim também a juventude egípcia voltava a se situar na vanguarda da revolta, deixando para trás seus líderes políticos. O grande ausente da jornada de terça-feira foi Mohamed El Baradei.
O ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica defendeu desde seu regresso ao Egito, há um ano, uma corrente de oposição denominada Assembleia Nacional para a Mudança. Esse grupo, um dos promotores das manifestações de terça-feira, confirmou que o diplomata não só não participou dos protestos, os quais havia animado timidamente em seu Twitter, como nem sequer está no Egito.
Enquanto com o avanço do dia começavam a surgir pequenas explosões de protesto em diferentes partes do país, a tentativa do governo de desautorizar a revolta, argumentando que os islâmicos Irmãos Muçulmanos a estavam comandando, caía por seu próprio peso. Assim como os demais dirigentes políticos, esses ficaram em segundo plano diante da força dos egípcios comuns que seguem os jovens que defendem a mudança.
Uma mudança política e carente de lemas de tom islâmico, como pretendia contaminar o regime. "Abaixo Hosni Mubarak. Abaixo Gamal Mubarak", "Povo egípcio, levanta a voz, tem o direito de falar", "Ontem éramos todos tunisianos, hoje somos todos egípcios, amanhã seremos todos livres" - foram alguns dos lemas lançados diante dos sindicatos de advogados e dos jornalistas, nas imediações dos tribunais egípcios. Mais de 500 mil pessoas protagonizaram ali confrontos com a polícia.
Alguns manifestantes lançaram pedras contra a polícia antidistúrbios do telhado de um edifício para romper o cerco que afogava os que se encontravam embaixo cortando a central rua de Ramsés. A reação policial foi contundente e a chegada de reforços levou os manifestantes a dirigir-se por ruas laterais para a praça de Tahrir, perseguidos por policiais que disparavam balas de borracha e gás lacrimogêneo. A central praça da Libertação é o símbolo a conquistar desta revolta e durante todo o dia os cidadãos haviam tentado alcançá-la sem êxito.
Houve mais de 500 detenções, que se somam às mais de 200 registradas pela Rede Árabe para a Informação de Direitos Humanos (ANHRI) na última terça-feira. Entre elas está a de um cidadão egípcio, Mark Gamal, casado com uma espanhola que se encontra em paradeiro desconhecido. A ANHRI confirmou que tem mais de 200 nomes de detidos, mas considera que o número poderia chegar a 400. Seu diretor, o advogado Gamal Eid, explicou que a maioria foi detida durante a noite nos confrontos que ocorreram na citada praça e em perseguições por todo o centro do Cairo.
"Muitos deles foram golpeados e torturados. Alguns feridos foram sequestrados dos hospitais e levados para dois campos de detenção fora da cidade", explica Eid. A polícia egípcia é famosa pela tortura sistemática em delegacias e centros de detenção, fato que foi denunciado por organizações internacionais de direitos humanos. "Fizemos saber ao promotor geral que todas as detenções são ilegais, porque se realizaram em uma manifestação legal, e vão contra os direitos fundamentais. Isso é um crime", concluiu o advogado.
Ao anoitecer, milhares de pessoas enfrentaram a polícia, que não hesitou em dispersá-las com gás lacrimogêneo. "Por que está me batendo? Também estou lutando por seus direitos", recriminou um jovem ao policial que empunhava à sua frente um cassetete de quase um metro. O desconcerto durou apenas o que demorou para dar o próximo golpe.