Em artigo na Folha de S.Paulo, juiz aposentado nega a existência de palestinos, uma estratégia equivocada e perigosa.
Jaafar Ashtiyeh / AFP
No último mês, a tensão entre Israel e Palestina tem se acentuado. O assassinato de três israelenses e um palestino, este queimado vivo, gerou episódios de xenofobia, violência intercomunitária, e a escalada para um novo confronto entre as Forças Armadas israelenses e grupos militantes palestinos, como o Hamas, está à espreita.
Nesse contexto, surpreende que, deste lado do Atlântico, pessoas ainda fomentem certo tipo de ideia que, no limite, flerta com o racismo e, no mínimo, atrapalha a busca pela paz. Foi isso o que fez Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, ministro aposentado do Superior Tribunal Militar, em artigo publicado na Folha de S.Paulo no domingo, 6.
No artigo intitulado Palestina, Bierrenbach afirma que “não existe povo palestino”, pois não haveria, “sob qualquer critério utilizado pelas ciências sociais”, uma “característica” que permita atribuir de forma “racional” a alcunha de “povo” aos palestinos. Segundo Bierrenbach, a criação do “povo palestino” é uma “jogada magistral de marketing” de Yasser Arafat, líder da Autoridade Palestina morto em 2004, que teria buscado um “território para exercer poder político” e abrigar grupos cujo “singular fator de unidade era e é o ódio a Israel”. Por fim, Bierrenbach iguala o antissemitismo, o racismo direcionado aos judeus, ao antissionismo, movimento de oposição à formação de um Estado israelense.
O texto de Bierrenbach parece ser produto de dois fenômenos – uma profunda ignorância a respeito da História e uma extensa influência do pensamento da extrema-direita israelense em seu raciocínio.
Há três grandes absurdos em negar a existência dos palestinos.
O primeiro deles é tratar como verdade o slogan “uma terra sem povo para um povo sem terra”, utilizado no fim do século XIX e início do XX por sionistas como argumento para estabelecer Israel. O slogan é notoriamente falso, pois a Palestina histórica, para onde migraram milhares de judeus após o Holocausto, não era uma “terra sem povo”. Era habitada, majoritariamente, por árabes. Segundo a ONU, após a Guerra de 1948, 700 mil refugiados árabes deixaram as terras que hoje são Israel. Em seu texto, Bierrenbach convenientemente esquece esses árabes e lembra apenas dos judeus que moravam na Palestina histórica.
O segundo absurdo é de ordem prática. Ao dizer que os palestinos são um povo “inventado”, Bierrenbach deslegitima o direito dos palestinos de terem um Estado e rompe com a alternativa amplamente consensual de que uma solução de dois Estados (um para os israelenses e outro para os palestinos) deve ser buscada. O consenso a respeito de dois Estados é tão amplo que até mesmo o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, é favorável a ele. Netanyahu assumiu essa posição publicamente em 2009, rompendo com a posição de seu partido, o Likud. Atualmente, a contrariedade à solução de dois Estados é minoritária entre setores moderados, mas majoritária em grupos radicais, como a extrema-direita israelense e o Hamas.
O terceiro absurdo da posição de Bierrenbach é que ela caminha na direção contrária ao estabelecimento da paz entre israelenses e palestinos. No passado, governos israelenses, notoriamente o de Golda Meir, defendiam a tese de que os palestinos foram “inventados”. O argumento era que, inicialmente, a luta na região foi travada entre judeus e árabes, e não entre judeus e um povo palestino específico. Ao longo do tempo, essa tese se tornou ultrapassada.
Para buscar a paz, houve o reconhecimento mútuo de que, assim como a identidade israelense foi forjada na luta para estabelecer um Estado judeu, a identidade palestina foi estabelecida na luta para a criação de um Estado palestino. Ao contrário do que Israel desejava, os árabes refugiados após 1948 não foram absorvidos por países vizinhos como Jordânia, Síria e Egito. Ao contrário, foram também hostilizados em um processo que ajudou a forjar a identidade palestina como a do povo espremido entre Israel e outros Estados árabes.
A argumentação de Bierrenbach é, assim, perigosa e equivocada. Como afirmou o historiador israelense Tom Segev, “não há pessoa inteligente hoje em dia que argumente sobre a existência da população palestina”. Como também afirmou Segev, as “nações são criadas gradualmente”, e o caso palestino é emblemático. Ao contrário do que afirma Bierrenbach, sobram provas no campo das ciências sociais para evidenciar a formação da identidade palestina: o processo histórico ocorreu integralmente no século XX, sob os olhares de todo o mundo, e foi amplamente documentado. A negação deste fenômeno serve apenas para propagar ideias nefastas e fomentar um clima de que a paz é impossível, fortalecendo os radicais dos dois lados e gerando mais violência.
Nesse contexto, surpreende que, deste lado do Atlântico, pessoas ainda fomentem certo tipo de ideia que, no limite, flerta com o racismo e, no mínimo, atrapalha a busca pela paz. Foi isso o que fez Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, ministro aposentado do Superior Tribunal Militar, em artigo publicado na Folha de S.Paulo no domingo, 6.
No artigo intitulado Palestina, Bierrenbach afirma que “não existe povo palestino”, pois não haveria, “sob qualquer critério utilizado pelas ciências sociais”, uma “característica” que permita atribuir de forma “racional” a alcunha de “povo” aos palestinos. Segundo Bierrenbach, a criação do “povo palestino” é uma “jogada magistral de marketing” de Yasser Arafat, líder da Autoridade Palestina morto em 2004, que teria buscado um “território para exercer poder político” e abrigar grupos cujo “singular fator de unidade era e é o ódio a Israel”. Por fim, Bierrenbach iguala o antissemitismo, o racismo direcionado aos judeus, ao antissionismo, movimento de oposição à formação de um Estado israelense.
O texto de Bierrenbach parece ser produto de dois fenômenos – uma profunda ignorância a respeito da História e uma extensa influência do pensamento da extrema-direita israelense em seu raciocínio.
Há três grandes absurdos em negar a existência dos palestinos.
O primeiro deles é tratar como verdade o slogan “uma terra sem povo para um povo sem terra”, utilizado no fim do século XIX e início do XX por sionistas como argumento para estabelecer Israel. O slogan é notoriamente falso, pois a Palestina histórica, para onde migraram milhares de judeus após o Holocausto, não era uma “terra sem povo”. Era habitada, majoritariamente, por árabes. Segundo a ONU, após a Guerra de 1948, 700 mil refugiados árabes deixaram as terras que hoje são Israel. Em seu texto, Bierrenbach convenientemente esquece esses árabes e lembra apenas dos judeus que moravam na Palestina histórica.
O segundo absurdo é de ordem prática. Ao dizer que os palestinos são um povo “inventado”, Bierrenbach deslegitima o direito dos palestinos de terem um Estado e rompe com a alternativa amplamente consensual de que uma solução de dois Estados (um para os israelenses e outro para os palestinos) deve ser buscada. O consenso a respeito de dois Estados é tão amplo que até mesmo o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, é favorável a ele. Netanyahu assumiu essa posição publicamente em 2009, rompendo com a posição de seu partido, o Likud. Atualmente, a contrariedade à solução de dois Estados é minoritária entre setores moderados, mas majoritária em grupos radicais, como a extrema-direita israelense e o Hamas.
O terceiro absurdo da posição de Bierrenbach é que ela caminha na direção contrária ao estabelecimento da paz entre israelenses e palestinos. No passado, governos israelenses, notoriamente o de Golda Meir, defendiam a tese de que os palestinos foram “inventados”. O argumento era que, inicialmente, a luta na região foi travada entre judeus e árabes, e não entre judeus e um povo palestino específico. Ao longo do tempo, essa tese se tornou ultrapassada.
Para buscar a paz, houve o reconhecimento mútuo de que, assim como a identidade israelense foi forjada na luta para estabelecer um Estado judeu, a identidade palestina foi estabelecida na luta para a criação de um Estado palestino. Ao contrário do que Israel desejava, os árabes refugiados após 1948 não foram absorvidos por países vizinhos como Jordânia, Síria e Egito. Ao contrário, foram também hostilizados em um processo que ajudou a forjar a identidade palestina como a do povo espremido entre Israel e outros Estados árabes.
A argumentação de Bierrenbach é, assim, perigosa e equivocada. Como afirmou o historiador israelense Tom Segev, “não há pessoa inteligente hoje em dia que argumente sobre a existência da população palestina”. Como também afirmou Segev, as “nações são criadas gradualmente”, e o caso palestino é emblemático. Ao contrário do que afirma Bierrenbach, sobram provas no campo das ciências sociais para evidenciar a formação da identidade palestina: o processo histórico ocorreu integralmente no século XX, sob os olhares de todo o mundo, e foi amplamente documentado. A negação deste fenômeno serve apenas para propagar ideias nefastas e fomentar um clima de que a paz é impossível, fortalecendo os radicais dos dois lados e gerando mais violência.