No início do século XX, Lorde Balfour, chanceler do Reino
Unido, proclamava: “As grandes potências estão comprometidas com o sionismo. E
o sionismo, seja ele correto ou errado, bom ou ruim, tem raízes em tradições de
eras, em necessidades atuais, em esperanças futuras, de importância muito mais
profunda do que os desejos e preconceitos dos 700 mil árabes que agora habitam
a antiga terra”.
CEBRAPAZ - Por Moara Crivelente*
Esta declaração é parte dos argumentos pela limpeza étnica
da população árabe da Palestina. Esta é a condição para um Estado judeu
idealizado pelo limitado e elitista círculo que se adjudicava – e se adjudica –
a representação de todos os judeus do planeta. Hoje, é disseminada e
irresponsável a acusação, contra os que criticam as práticas do governo de
Israel, de “antissemitismo”. Já os judeus críticos do projeto são taxados de
“judeus que se odeiam”, mas há agressões ainda mais virulentas.
É simbólico e rasteiro o uso de uma tragédia humana, o
Holocausto, para manter Israel como vítima global, enquanto a sua política
“securitária” é correlata da insegurança e do genocídio dos palestinos. Mas os
promotores desta política já estão treinados a descreditar esta palavra
politizada.
De acordo com o Direito Internacional Humanitário, genocídio
é a perseguição a um grupo específico por motivos políticos, de etnia, religião
ou cultura, o seu massacre, a sua expulsão e a destruição sistemática da sua
propriedade. Exatamente o que acontece na Palestina ocupada; algumas vezes, de
forma mais “eficiente”, com recorrentes “operações militares” cujos métodos e
resultados são denunciados pelos próprios soldados. Muitos deles, jovens
fadados a servir a máquina da guerra ou ir para a prisão, e é isso o que muitos
têm escolhido.
Judeus de várias nacionalidades manifestam rechaço
contundente à apropriação da sua história, religião e cultura pelo sionismo
virulento e pela liderança israelense. Em 2014, por exemplo, 327 sobreviventes
do Holocausto ou seus descendentes, na International Jewish Anti-Zionist
Network (Rede Judaica Internacional Antissionista), manifestaram-se contra o
“contínuo massacre do povo palestino”, estarrecidos diante da 12ª ofensiva
israelense contra a Faixa de Gaza desde a criação do Estado de Israel, de
acordo com o historiador Jean Pierre Filiu, ou a terceira em cinco anos.1
Israelenses também denunciam o embrutecimento de uma
sociedade altamente militarizada e uma extrema-direita sedenta de sangue, que
reprime, persegue e bane organizações de oposição. Recentemente, foi o caso da
Breaking the Silence, associação de veteranos que denuncia as práticas do
Exército israelense na Palestina ocupada. Os ministros da Educação e da Defesa
proibiram sua presença em escolas, faculdades ou eventos oficiais, acusada de
ter objetivos “maléficos”.
Uma das suas denúncias foi sobre o emprego da Doutrina
Dahiya durante as ofensivas militares. Trata-se do uso deliberado de “força
desproporcional” para “dissuadir” a resistência. O nome nasceu da tática
aplicada em 2006 contra o Líbano, quando o bairro homônimo de Beirute, tido
como reduto do Hezbollah, foi devastado. Foi também o caso do bairro Shujai’ya,
em Gaza, tido como reduto do Hamas, onde em julho de 2014 cerca de 70 pessoas
morreram num só dia durante os ataques do Exército de Israel, o “exército mais
moral do mundo”.
Falei com o Dr. Belal Dabour, médico do maior hospital de
Gaza, al-Shifa, durante as ofensivas, e o desespero era tremendo. Dos 2.200
palestinos mortos em 51 dias de bombardeios, a maior parte era civil e quase
600 eram crianças. A população de Gaza é de 1,8 milhão de pessoas confinadas em
um dos territórios mais densamente habitados do planeta, sob bloqueio completo
desde 2007. Cerca de 1,2 milhão buscou ali refúgio de outros massacres.
Desafiando o “consenso internacional” – o estabelecimento do
Estado da Palestina nas fronteiras anteriores a junho de 1967 (quando Israel
ocupou os territórios palestinos e de outros vizinhos árabes) – o aparato da
ocupação israelense buscou criar “fatos” que enterrariam de vez a “solução de
dois Estados”, construindo colônias ilegais e o muro de separação – denominado
“barreira de segurança” pela direita israelense. É o que denuncia o
israelense-estadunidense Jeff Halper, num livro de 2015 sobre a assombrosa
“matriz de controle” de Israel.
É desfaçatez que o senhor Alon Feuerwerker, em seu recente
artigo na Folha de S.Paulo (“Quatro Premissas Erradas sobre Israel”,
24/01/2016), indague “qual o problema de existir uma minoria judaico-israelense
na Palestina”. Como analista político que é, duvido que a pergunta resulte da
desinformação sobre as condições da instalação acelerada dos 560 mil colonos
israelenses em território ocupado palestino. Não estará ele com a cabeça enterrada
na areia quando a construção das casas em condomínios fechados e verdadeiras
cidades acontece apesar do repúdio internacional, inclusive do aliado EUA –
embora de forma tímida e hipócrita, dada a sua responsabilidade no caso. Faltou
a Feuerwerker alguma honestidade para com o leitor, o que seria facilmente
corrigido com a contextualização dos documentos citados por ele e dos
posicionamentos dos palestinos.
Os crimes de guerra da ocupação
A condenação internacional, ao contrário do que alega a
propaganda israelense, não nasce da perseguição ou do “antissemitismo”, mas do
Direito Internacional Humanitário. O espólio das terras palestinas acontece,
por exemplo, através da decisão arbitrária de Israel de não reconhecer
registros de propriedade do período do Mandato Britânico e das atuais
desapropriações. Se se desse ao trabalho de conversar com um palestino entre os
milhares engajados em movimentos sociais que buscam justiça, ou com a liderança
palestina, o senhor Feuerwerker ouviria que conviver com “uma minoria
judaico-israelense na Palestina” nunca foi o problema. Sempre houve judeus
entre os palestinos, que não invadiram residências e se instalaram, com a
proteção dos soldados e a anuência do governo da Potência Ocupante, como
recentemente aconteceu em Hebron, mais uma vez.
Mas esta fala dos palestinos não serve à sua representação
como “terroristas” que precisam ser contidos através da ocupação e da “punição
coletiva” (pelo delito de resistência): a demolição de casas, o anúncio das
“zonas fechadas” de controle militar, batidas noturnas, uso de munições letais
para reprimir protestos, detenções arbitrárias e o encarceramento massivo por
motivos políticos, etc. Aliás, a palavra “ocupação” também é banida; juristas
simpáticos ao sionismo virulento esforçam-se constantemente por desconstruir
esta realidade manipulando o direito internacional contra a condição palestina,
em resistência diante do espólio violento que ocupa o seu cotidiano.
A catástrofe – Nakba, em árabe, que culminou em 1948, com a
expulsão de 750 a 800 mil palestinos e a destruição de mais de 500 vilas – é,
na verdade, contínua. Os palestinos continuam sendo expulsos das suas terras ou
tendo suas casas demolidas através de diversas regulamentações do regime
militar imposto por Israel – enquanto mais de 560 mil colonos israelenses são
assentados em verdadeiros condomínios fechados ou cidades com a infraestrutura
de que os palestinos não dispõem, estradas particulares, água abundante,
serviços e movimentação privilegiada.
Em linguajar jurídico, isso traduz-se como “crime de
guerra”. A transferência de população da Potência Ocupante para o território
ocupado, concomitante à expulsão da população residente, é assim classificada
pela Quarta Convenção de Genebra, que foi ratificada por Israel em 1952. Àquela
altura, processar criminosos de guerra era do “interesse nacional”.
Algumas das regulamentações usadas para “controlar” os
palestinos e “aplastar seu desejo de resistir” são heranças do Mandato
Britânico, parte da mesma regulamentação que sionistas acusam de ter servido
aos colonizadores britânicos para os reprimir. Afinal, o acordo era o de que a
colonização seria conduzida pelos britânicos – daí a “dosagem” da migração
mesmo assim massiva – mas milícias sionistas como a Irgun ou a Haganah, que se
opunham ao controle, foram responsáveis por atos que, se perpetrados por
árabes, seriam taxados de “terroristas”. Foram mais de 60 ataques ou explosões,
como aquela contra o Hotel King David, onde estava sediada a administração
britânica, em Jerusalém, em 1946. Mais de 90 pessoas morreram.
Massacres como o de Deir Yassin, perpetrado pela Irgun em
1948, e tantos outros, são fatos que a liderança israelense e seus
simpatizantes buscam esconder embaixo do tapete. Mas historiadores como Shlomo
Sand, Ilan Pappé e outros menos críticos, como Benny Morris, denunciam em
diversas obras, aulas, entrevistas, artigos e outras manifestações o rastro de
sangue palestino. Também o fazem jornalistas como Amira Hass e Gideon Levy, do
diário Haaretz, que durante a ofensiva de 2014 teve de contratar guarda-costas,
pois recebia ameaças dos seus leitores.
Na narrativa israelense oficial, entretanto, apenas a sua
própria versão de outras – as suas – tragédias é permitida, para construir a
impressão, como fez Feuerwerker, de que se trata de um conflito simétrico, com
dois lados de igual responsabilidade pela continuidade da violência que vitima
também israelenses. Se comprometidos com a paz, os sucessivos líderes sionistas
teriam desocupado a Palestina e se engajado no infinito “processo de paz” que,
monopolizado por seu maior aliado, os Estados Unidos, só fez enraizar a
ocupação israelense, para o desespero ou a exasperação dos palestinos.
“Preocupações securitárias” – claro, com a “segurança” dos
israelenses – dominaram as sucessivas negociações para ditar aos palestinos
mais condições inaceitáveis como, por exemplo, a permanência de tropas
israelenses no Vale do Jordão. Outro “impasse” foi apresentado como a recusa
dos palestinos em reconhecer Israel como “Estado judeu” – enquanto Israel
sequer pretende reconhecer o Estado da Palestina, uma promessa eleitoral de
Netanyahu. Quase 20% da população de Israel é palestina, mas sua cidadania
inferior é garantida por cerca de 50 leis racistas (a informação é da
organização israelense de defesa dos direitos humanos B’Tselem).
Transferir a responsabilidade pela falta de avanço
diplomático aos palestinos também é uma estratégia patente. Imagine alguém há
décadas obrigado a dar um pedaço do seu corpo, na esperança de manter a alma.
Ao negar-se a entregar também a alma, o inferno é o destino. E é isso o que a
ocupação israelense oferece. Muitos israelenses já entenderam que a paz, assim
como a justiça, não têm lugar no inferno. Mas enquanto a liderança for
agraciada pela impunidade – e daí a importância do boicote que tem sim afetado
o brio da elite política e os bolsos da elite econômica de Israel, já que a
justiça tarda – a violência mantém-se.
*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e
Resolução de Conflitos, jornalista e membro do Cebrapaz, assessorando a
Presidência do Conselho Mundial da Paz.
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