Ilustração de Marlons Anjos |
Do Blog JUNHO
Publicado originalmente no Counterpunch
Por Haim Bresheeth e Sherna Berger Gluck
(Tradução de Rejane Carolina Hoeveler)
Um argumento padrão contra o movimento de Boicote,
Desinvestimento e Sanções (BDS) contra a ocupação israelense – e especialmente
contra o boicote acadêmico – tem sido a “necessidade de dialogar” com os
israelenses. De fato, durante os 46 anos de ocupação, numerosos esforços para
“dialogar” têm sido repetidamente feitos, todos os quais são calorosamente
abraçados por Israel e suas instituições acadêmicas.
O exemplo mais recente é uma conferência de “História Oral
Internacional” organizada pela Universidade Hebraica de Jerusalém, com a
participação do renomado historiador oral italiano Alessandro Portelli. Os
temas da conferência incluíam estudos sobre trauma, estudos sobre holocausto e
estudos sobre conflitos, evitando assiduamente, no entanto, qualquer referência
ao Nakba.[1]
Tal elipse típica se tornou uma zona de batalha icônica ente
os apoiadores dos direitos palestinos e os pró-israelenses, os quais promovem o
“diálogo” e o “compromisso”. Não surpreende que a Universidade Hebraica evite
esse assunto, dada sua cumplicidade com o trauma palestino em curso. A recém
aprovada Lei Nakba em Israel proíbe mesmo a celebração do Nakba, portanto essa
nulificação é parte de um projeto maior de negação israelense.
Foram feitos esforços privados para dissuadir os dois
conferencistas escalados, e tornou-se claro que eles subscreviam firmemente o
valor do “compromisso”, mesmo com uma instituição como a Universidade Hebraica,
cuja cumplicidade na violação dos direitos palestinos e da lei internacional
estão completamente documentadas. Seguindo essa discussão, a página original da
conferência foi trocada, e uma referência elíptica pareceu abrir a porta para
alguma discussão para a Nakba anteriormente não mencionada.
As questões envolvidas nessa conferência vão além de uma mal
informada ou mal guiada participação dos conferencistas escalados; uma chamada
pública para boicotar a conferência, assinada por 72 acadêmicos internacionais,
foi lançada em agosto. Agora, em apenas um mês, existem mais de 250
assinaturas, das quais um terço é de historiadores orais de 19 países,
incluindo África do Sul, Brasil, Espanha e Índia.
Como a discussão posterior sobre o boicote foi cortada na
lista de emails dos Estados Unidos, onde a conferência foi inicialmente
anunciada, uma mensagem postada pela organizadora da conferência foi o último
comentário substantivo sobre a questão. Nele, ela afirma que boicotar a
Universidade Hebraica “apenas serve como um desserviço a muitos indivíduos,
organizações e comunidades que dedicam suas vidas profissionais e pessoais para
encontrar uma resolução justa para o conflito”.[2] Então, o argumento para o
“compromisso” era permitido, mas à comunidade acadêmica americana era negado o
acesso as evidências constrangedoras para o boicote. De fato, eles estavam
dando uma resposta a uma questão ainda sequer debatida publicamente.
A disputa entre os acadêmicos, e a timidez daqueles nos
Estados Unidos comparados com outros pelo mundo, não é nova. Mais do que isso,
representa um conflito mais profundo, relativo à questão mesma do
“compromisso”.
A insensatez do “compromisso”
Os acadêmicos têm ido a conferências em Israel,
especialmente em Jerusalém, durante longas cinco décadas de ocupação,
“dialogando” com seus pares israelenses. Já é ruim o suficiente que essas
participações não tenham resultado em absolutamente nada de positivo, mas, para
piorar, eles se tornaram parte mesmo da estratégia política israelense: mais
participação, discussão, encontros, negociações entre os lados ad infinitum. A
atual fase de tais exercícios infrutíferos recentemente iniciada pelo
Secretário de Estado John Kerry vai provavelmente se juntar às demais na lata
de lixo da História.
Pior ainda, sob a aparência de continuar discussões e
negociações – uma tática de adiamento desenvolvida pelo Primeiro-Ministro
Shamir nos anos 1980[3] – Israel conseguiu adicionar 700.000 colonos ilegais
nos Territórios Ocupados da Palestina e da Síria. Isso equivale ao número de
refugiados palestinos que foram forçados a sair da Palestina em 1948 pelas
forças israelenses e nunca retornaram, apesar de inúmeras resoluções da ONU.
Em mais de seis décadas de existência, Israel desafiou a ONU
em todas as mais cruciais resoluções aprovadas sobre os direitos dos
palestinos; instalou ilegalmente colonos nos territórios; desafiou a Convenção
de Genebra numerosas vezes, incluindo aí sua “falha” em proteger a população
sob ocupação. Entre outras coisas, se recusou a dar às universidades palestinas
o direito de operar, e fechou as instituições palestinas existentes por longos
períodos. Durante todo esse tempo, ninguém na academia israelense pediu pela
reabertura das universidades palestinas, ou pela restituição da liberdade
acadêmica na Palestina. As universidades israelenses foram diretamente
cúmplices da violação israelense dos direitos humanos palestinos e das leis
internacionais, e todas colaboraram de alguma forma com a ocupação militar,
incluindo aí assistência ao complexo industrial-militar.[4] No caso da
Universidade Hebraica de Jerusalém, seu campus de Mt. Scopus foi expandido
dentro de terra ilegalmente confiscada e ocupada.
No entanto, em contraste com o caso do apartheid
sul-africano, a maioria dos acadêmicos pelo mundo permaneceu calada por anos,
mostrando pouca oposição aos crimes de Israel. Somente em 2005, seguindo o
chamado da PACBI por um boicote acadêmico, o BDS e o boicote acadêmico
começaram a sério no Reino Unido. Desde então, o BRICUP (Comitê Britânico pelas
Universidades na Palestina, na sigla em inglês) tem se envolvido em diversas
ações de sucesso, incluindo a retirada do famoso físico Stephen Hawking da conferência
presidencial de 2013 – uma ação que galvanizou cientistas e acadêmicos pelo
mundo.[5]
Quatro anos após a fundação da BRICUP, e em resposta a
Operação Cast Lead[6] campanhas tanto nos EUA (USACBI) quanto na França
(AURDIP)[7] foram iniciadas. Seguidas ao sucesso do repúdio mostrado por
Hawking, ambas campanhas tem sido ativas. Nos Estados Unidos, talvez o mais
significativo sucesso no front acadêmico tenha sido a aprovação da resolução do
boicote acadêmico na Conferência de Estudos Asiático-americanos em maio de
2013. A AURDIP, apesar de severamente dificultada pelas políticas repressivas
iniciadas por Sarkozy e totalmente aplicadas sob Holland, permanece uma
importante referência para o boicote acadêmico, regularmente utilizando eventos
públicos de mostra de cooperação entre instituições acadêmicas de França e
Israel como uma plataforma para promover o BDS.
Hoje, existem campanhas ativas de boicote na Espanha (PBAI),
Berlim (BAB) e Índia (IncABCI), todas as quais foram iniciadas em 2010[8], e na
Irlanda (AFP – Academics for Palestine) foi criada em 2012[9]. Talvez o mais
importante desdobramento tenha sido o desenvolvimento de um movimento BDS
dentro de Israel (Boycott from within – Boicote a partir de dentro). Essas
campanhas de boicote têm angariado apoio crescente, freqüentemente de alguns
dos mais notáveis acadêmicos em seus países e regiões, como Josep Fontana, o
prestigiado historiador catalão. Os grupos de boicote na Espanha, Índia e
Estados Unidos estão atualmente organizando contra parcerias sendo montadas com
a Technion[10] de Israel. Mesmo na Alemanha, onde qualquer crítica a Israel é
altamente suspeita, o BAB está desafiando um acordo de cooperação entre a
Universidade Livre de Berlim e a Universidade Hebraica.
A mensagem está se espalhando, gradualmente penetrando as
instituições acadêmicas em todas as partes. Em resposta, Israel e o movimento
sionista têm devotado tremendos esforços, financiados pelo governo, para conter
o boicote. A política de longo prazo que foi então idealizada priorizou o Reino
Unido. Uma série de forças-tarefas feitas em universidades israelenses chegaram
ao Reino Unido para “explicar” a necessidade de “compromisso” e “diálogo”. Os
mesmos professores que por anos se puseram contra qualquer engajamento no apoio
aos direitos civis e humanos dos palestinos, incluindo seu direito a educação,
estavam agora militando em apoio a “real vítima” – Israel – e promovendo o
“compromisso” com as forças de ocupação sob a bandeira do diálogo. A mais
recente tentativa, certamente não a última, é a campanha do governo para usar
os estudantes israelenses contra o boicote. Revelações recentes expuseram a
criação de unidades disfarçadas nas universidades israelenses, criadas para
trabalhar com a União Estudantil Nacional Israelense, usando as mídias
sociais.[11]
Seja o que for que se pense sobre as universidades
israelenses, elas não podem ser acusadas de serem liberais ou apoiadoras de
direitos humanos. Alguns meses antes da incursão em Gaza em dezembro de 2008,
uma petição pela liberdade acadêmica nos Territórios Ocupados circulou entre
mais de 10.000 acadêmicos israelenses. Essa moderada petição, que requeria
meramente o governo a permitir que os palestinos desfrutassem da mesma
liberdade que os acadêmicos israelenses, foi assinada por apenas 407 deles – 4%
do total. As associações acadêmicas em Israel nem mesmo a discutiram. Embora a
Universidade de Tel-Aviv seja de longe a mais “liberal” de todas, com 155
membros assinando a petição, em 2012, Shlomo Sand[12] se sentiu compelido a
repreender seus colegas no Departamento de História por ocultarem a
problemática história de sua própria universidade, construída na antiga vila
palestina de Sheikh Muwanis.[13]
Os acadêmicos israelenses continuamente ignoram os chamados
da sociedade civil palestina pelo BDS contra a ocupação agressiva de Israel,
argumentando pelo “diálogo” com os colegas israelenses. De fato, a conferência
na Universidade Hebraica é promovida como um “local de participação no qual
‘diálogos difíceis’ sobre memória e perspectivas serão discutidos”. Como de
costume, ao invés de promover diálogo com os acadêmicos palestinos, o máximo
que os organizadores conseguem fazer é uma referência a “questões que este país
e região encaram”. Seria a ocupação tal questão?
O que pode ter de errado em dialogar?, alguém poderia
perguntar. No entanto, a questão correta seria: “é moral colaborar com um
Estado colonial, racista, militarizado, de forma a limpar seus crimes?” Não
significa isto que os crimes continuam e que novos crimes serão perpetrados? De
fato, as evidências claramente demonstram que “compromissos” continuados não
levaram a nenhuma resolução, mas, ao contrário, serviram para adormecer a
sensibilidade da academia internacional para as realidades da Palestina
ocupada. No caso da África do Sul, era claro para todos os acadêmicos que não
existia nenhuma maneira de “dialogar” com o apartheid falando com seus
representantes; o único modo de lidar com o apartheid era se opondo a ele –
boicotar, desinvestir e aplicar sanções; negar às instituições sul-africanas
qualquer apoio ou diálogo; e seguir o conselho do CNA.[14]
Embora não ainda na mesma escala que a campanha
sul-africana, a campanha BDS tem tido sucesso. Muitos acadêmicos pelo mundo
estão agora sensibilizados demais para tornarem-se cúmplices da ocupação ilegal
de Israel, suas políticas coloniais e suas práticas de apartheid e pararam de
colaborar com instituições israelenses. A campanha para boicotar a conferência
de história oral “internacional” da Universidade Hebraica é parte de um crescente
esforço mundial para honrar o chamado palestino por um boicote acadêmico a
Israel.
Porque tantos historiadores vêem seu trabalho como um modo
de dar voz aos oprimidos e silenciados, boicotar essa conferência deveria ser
óbvio. De fato, para os historiadores orais com mente aberta, trata-se somente
disto, mesmo que muitos dos praticantes da História Oral nos Estados Unidos
tenham enfiado basicamente suas cabeças na areia, seguindo a orientação de seu
governo.
Nós imaginamos o que os dois advogados do compromisso,
solicitados para a palestra, farão, e especialmente como a Universidade
Hebraica responderá. Irá ela jogar fora, por exemplo, os dispêndios generosos
aos participantes, lhes rendendo sua parte para a máquina de propaganda
israelense? Nós esperamos, ao contrário, que os historiadores orais ao redor do
mundo prestarão atenção ao chamado dos palestinos, honrando a fundação
ética/moral básica do trabalho do historiador.
Notas
[1] Nakba, que em árabe significa “catástrofe”, é como ficou
conhecido o grande êxodo palestino de 1948, quando mais de 700 mil palestinos,
segundo dados da ONU, fugiram ou foram expulsos de seus lares. [N.T.]
[2] Dr. Sharon Kangisser Cohen, postado na lista de
divulgação da Conferência, 05 de agosto de 2013. Disponível em:
http://bit.ly/1PDm0XI.
[3] Yitzhak Shamir (1915-2012), do partido conservador
Likud, foi primeiro-ministro duas vezes, entre 1983 e 1984 e entre 1986 e 1992.
Ex-integrante do Lehi, grupo armado sionista que operava na Palestina entre
1940 e 1948, é considerado o mentor do assassinato do diplomata Folke
Bernadotte, nomeado pela ONU para mediar o conflito entre árabes e israelenses
na região em 1948. [N.T.]
[4] KELLER,
U. “The Academic Boycott of Israel and the Complicity of Israeli Academic
Institutions in Occupation of Palestinian Territories”. In. The Economy of the
Occupation: A Socioeconomic Bulletin. Alternative Information Centre, 2009.
Disponível em: http://bit.ly/23w9Muu.
[5] Ver
SHEIZAF, Noam. “Stephen Hawking’s message to Israeli elites: the occupation has
a price”. +972. 8 de maio de 2013. Disponível em: http://bit.ly/1KHUTJR.
[6] Cast Lead (Chumbo fundido) foi o nome dado pelas forças
israelenses à ofensiva lançada na Faixa de Gaza em dezembro de 2008, que
resultou na morte de pelo menos 1.387 palestinos, mais da metade civis, entre
eles 320 crianças e 111 mulheres, segundo a ONG israelense B’Tselem. [N.T.]
[7] AURDIP
– Association Universitaire pour le Respect du Droit International en
Palestine.
[8] PABI – La Plataforma para el Boicot Académico a Israel;
BAB – Berlin AB; InCACBI – Indian Campaign ACBI.
[9] Começada com a aprovação, em 9 de novembro de 2012, de
uma moção de boicote acadêmico na união acadêmica TUI (Teachers Union of
Ireland). Ver PACBI, “TUI
Dublin Colleges Branch AGM passes motions in support of Boycott, Disenvestment
and Sanctions; recognizes Israel’s apartheid nature”. 13 de novembro de
2012. Disponível em http://bit.ly/1UtnUOZ.
[10] Instituto de Tecnologia de Israel, sediado em Haifa.
[N.T.]
[11] Ver RAVID, Barak. “Prime Miniter’s Office recruiting students to wage online hasbara
battles”. Haaretz, 13 de agosto de 2013. Disponível em: http://bit.ly/;
e ABUNIMAH, Ali. “Israel’s
‘pretty face’: how National Union of Israeli Students does government’s
propaganda dirty work”. The Electronic Intifada. 05 de janeiro de 2012.
Disponível em: http://bit.ly/1KdjZ8w.
[12] Professor de História da Universidade de Tel-Aviv. [N.T.]
[13] SAND,
S. The Invention of the Land of Israel: From Holy Land to Homeland. Londres:
Verso, 2012. p. 259-281.
[14] Congresso Nacional Africano. [N.T.]
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Matéria relacionada:
Deputado Jean Wyllys em sua recente visita à Israel para um “diálogo com a academia” |
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