sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Disputa pelo falafel revela a essência racista de Israel

Culinária árabe palestina, falafel
Falafel é um bolinho frito de grão-de-bico bem temperado, prato típico árabe / Reprodução



Por Igor Fuser – Brasil de Fato


Em um mundo dilacerado por disputas geopolíticas, pelo racismo e pelas mentiras midiáticas, até mesmo a simples divulgação de uma receita culinária pode esconder – e, para quem fizer a leitura certa, revelar – as estruturas ideológicas criadas para perpetuar as injustiças.

Pelos misteriosos caminhos do facebook, chegaram até a minha tela duas postagens recentes, que remetem ao mesmo assunto – pratos tradicionais da cozinha árabe, apresentados pelos porta-vozes do sionismo como produtos culturais israelenses.

No dia 30 de novembro, o site da Federação Israelita de São Paulo publicou uma nota que começava com a seguinte frase: “Aprenda a fazer falafel, esse bolinho frito de grão-de-bico, bem temperado e saboroso, que faz parte da culinária israelense.”

Pouco depois, no dia 4 de dezembro, a página do consulado de Israel em São Paulo apresentava o halawi, iguaria servida desde o início do século passado nas lanchonetes de comida árabe no Brasil, como um “típico doce israelense/árabe feito à base de gergelim”.

Só com muita má-fé, desonestidade mesmo, alguém pode apresentar esses dois quitutes como israelenses. O falafel é o prato mais popular em todo o mundo árabe. A origem do nome vem do verbo árabe falfala, que significa "tempero". É consumido pelos árabes do Oriente Médio desde que eles se constituíram como povo, na época do profeta Maomé (Mohamed), no século 7, mas historiadores acreditam que já fazia parte da alimentação no Egito dos faraós, milênios antes da Era Cristã.

Quando os primeiros colonos judeus chegaram à Palestina, no final do século 19, vindos da Europa Oriental, eles não tinham o menor contato com a culinária árabe. Nunca tinham provado o falafel nem o halawi.

Aquela imigração se deu sob o impulso do sionismo, movimento político surgido na Europa, com o objetivo de construir na Palestina um país apenas para os judeus. Desde o início, os colonos sionistas formaram comunidades separadas na Palestina. Viviam à parte, sem se misturar com os árabes, aos quais desprezavam. Mas, espertos que eram, logo incorporaram o delicioso falafel à sua dieta cotidiana.

Pode parecer picuinha denunciar – como fazem intelectuais e ativistas árabes – a apropriação simbólica desses pratos pelos israelenses. Porém os palestinos, vale lembrar, são um povo árabe, e a preservação da sua cultura é parte inseparável da defesa do território.

Em 1948, os colonos judeus se apoderaram, pela força, de 80% das terras da Palestina, embora constituíssem menos de 30% da população, e lá instalaram o Estado de Israel. A maioria dos habitantes árabes foi expulsa e passou a viver, na condição de refugiados, em países vizinhos. Para “convencer” essas famílias a irem embora, as milícias sionistas invadiam aldeias palestinas e massacravam seus habitantes. Moradores do sexo masculino entre 10 e 50 anos de idade eram separados dos demais e executados, perante os olhos da comunidade. Os demais fugiam, apavorados.

Assim nasceu Israel. Os 20% do território palestino que ficaram de fora – a Cisjordânia e a Faixa de Gaza – foram ocupados depois pelos israelenses, por meio da guerra, em 1967, e até hoje mantidos sob seu controle. Lá vigora um regime de segregação racial semelhante ao apartheid da África do Sul.

Nos territórios ocupados, Israel instalou centenas de assentamentos judaicos, localizados nas terras mais férteis, no alto das colinas e ao redor dos mananciais de água, expulsando os moradores locais. Ligando esses assentamentos entre si e a Israel, construiu-se uma moderna rede de estradas, cercadas por arame eletrificado, por onde os palestinos são proibidos de trafegar.

O deslocamento dos moradores locais se dá de forma precária, condicionado à passagem por centenas de postos de controle do exército israelense. Lá os palestinos são humilhados diariamente, submetidos a longas esperas ou à proibição da passagem. Doentes morrem nas ambulâncias bloqueadas nesses check points, gestantes dão à luz e jovens veem frustrado o seu direito à educação por não conseguirem manter a frequência às aulas.

Em Israel propriamente dito, os palestinos constituem uma minoria subalterna. São moradores não judeus no único país do mundo que define a cidadania por um critério religioso. Na escola, as crianças palestinas são forçadas estudar uma versão deformada da “história” dos judeus, que glorifica a ocupação sionista da Palestina, ignorando a cultura islâmica e a riquíssima tradição histórica dos povos árabes.

O curioso é que, ao mesmo tempo que massacram e marginalizam os árabes, apoderando-se das suas terras, os israelenses também se apropriam, sistematicamente, do precioso legado cultural e material que encontraram na Palestina.

O símbolo visual de Israel, presente nos cartões postais, nos cartazes e nas camisetas vendidas aos turistas, não é nada que os sionistas tenham construído nos cem anos de usurpação. É a imagem do Domo da Pedra, um lindíssimo templo religioso muçulmano, situado no coração de Jerusalém, uma cidade anexada, ilegalmente, por Israel.

Em Tel Aviv, a maior cidade israelense, o bairro de maior interesse, repleto de ateliês de artistas, butiques descoladas e charmosos cafés, é Al Jaffa, com suas construções pintadas de branco e as vielas labirínticas no estilo dos típicos centros urbanos árabes. Os antigos moradores foram todos expulsos em 1948, sem indenização, sem nada.

Eu percorri aquelas ruas em 1991, na única vez que visitei Israel, como jornalista. Fazia parte de um grupo convidado pelo governo de lá, recepcionado por judeus brasileiros que haviam imigrado e se tornado cidadãos israelenses. Num dos vários passeios a que eles nos levaram, sempre muito gentis, percorremos a cidade velha de Jerusalém, com suas lojinhas de lembranças e badulaques para turistas. Os donos, comerciantes árabes, nos abordavam na rua, oferecendo seus produtos nos mais variados idiomas.

Nosso guia, um brasileiro-israelense, ficou muito irritado com a cena e tentou nos persuadir a boicotar aqueles humildes vendedores. “Não, não comprem nada desses árabes”, dizia ele. “Amanhã vamos visitar a parte judaica de Jerusalém e vocês poderão comprar as mesmas coisas por lá”.

Por aí se vê que a polêmica em torno do falafel e do halawi, como tudo o que diz respeito ao conflito palestino-israelense, nada tem de inocente.

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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Resistência e ação na solidariedade ao povo palestino

Campo de Aida na Palestina
Mural no campo de refugiados de Aida, na Palestina, mostra o documento de identidade dos refugiados. Foto: Moara Crivelente



Por Moara Crivelente*



Há décadas demais, afirmamos a solidariedade ao povo palestino com números e fatos que expõem objetivamente a ocupação israelense. Há refugiados, mortos e prisioneiros demais, mas nenhum número enfatiza o suficiente que apenas um homem, mulher ou criança sob ocupação é demais. Este 29 de novembro, Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino, não seria diferente. Afinal, é a data em que, em 1947, a “partilha” lançou a chamada “questão palestina”.

Todos os anos, movimentos solidários ao povo palestino em sua luta contra a ocupação israelense, em todo o mundo, marcam a data para recordar o momento crítico em que as Nações Unidas definiram a partilha iníqua da Palestina entre judeus e árabes, consolidando um projeto colonial impulsionado pelas potências britânica e francesa, no fim do século 19.



bandeiras


Decoramos os números das resoluções mais pertinentes, 181, 194, 242 e tantas outras que reafirmam – porque é inacreditavelmente necessário – os direitos mais essenciais do povo palestino, condendam a ocupação ou ainda reconhecem o direito de um povo sob ocupação à resistência.

A proposta de “partilha” acabou por validar, de certa forma, a narrativa étnico-religiosa sobre um “conflito” nascido do projeto colonialista, como em tantos outros lugares do mundo onde aparentes disputas identitárias foram instrumentalizadas pelos colonizadores. A separação do território e da população em linhas étnicas e religiosas foi em si um ponto baixo para a humanidade. Mas nem mesmo nestes moldes se estabeleceu o Estado da Palestina.

Embora haja algum consenso entre as vozes ditas “moderadas” sobre a estrutura política da situação na Palestina e o impacto destrutivo da ocupação crescente, desde o colonialismo e do imperialismo que a sustentam até a desumanização virulenta que a “justifica”, a questão ainda é permeada pelas representações étnico-religiosas de uma história milenar aparentemente sem solução e assim tratada.

No ano em que a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou 29 de novembro o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino, em 1977, o Likud (“A Consolidação”) – partido de direita hoje no poder – ascendia em Israel, ainda como uma aliança, defendendo a anexação – embora o termo raramente seja usado – dos territórios palestinos ocupados na guerra de 1967: Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental.

Como hoje dito por membros dos partidos ainda mais extremistas, como o HaBayit HaYehudi (“Lar Judaico”) dos ministros da Justiça, Ayelet Shaked e da Educação e Assuntos da Diáspora, Naftali Bennet, alguns declaravam inspirações religiosas sobre o restante da Palestina e outros usavam jargões militares para promover a sua anexação, alegando que a defesa de Israel depende do que seria uma “zona de contenção” das nações árabes vizinhas.

Mesmo assim, aos palestinos se exige o compromisso com um “processo de paz” há muito enterrado na expansiva construção de colônias, nas reiteradas manifestações da liderança de direita em rejeição do Estado da Palestina, no encarceramento massivo, nas repetidas ofensivas militares, nos postos de controle esparramados, nos regimes que limitam ou impossibilitam a circulação, em um muro de separação quilométrico, no contínuo roubo de terras, no bloqueio completo da Faixa de Gaza, na negação do direito dos milhões de refugiados ao retorno e na perseguição dos defensores dos direitos palestinos na Palestina ocupada, em Israel e no exterior.

Dos oito milhões de palestinos, na Palestina ou na diáspora, em países vizinhos ou no resto do mundo, cinco milhões são refugiados – incluindo os expulsos dos territórios hoje israelenses, originários das cerca de 500 vilas destruídas pelas milícias sionistas durante a Nakba, a Catástrofe palestina, em massacres que marcam a história da luta nacional. Em documentos oficiais e discursos publicados, a “limpeza étnica” da Palestina era uma tática declarada.

Como afirma a ONU, o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino é uma oportunidade de lembrar ao mundo que a pendência custa caro, cotidianamente, a um povo massacrado, mas que resiste. Para os aliados de Israel, a “potência ocupante”, como definido no direito internacional humanitário, a data é observada com algum incremento sempre insuficiente de apoio ao desenvolvimento de lógica liberal ou de apoio humanitário às agências da ONU que prestam assistência aos refugiados, enquanto sua cumplicidade ou respaldo a Israel – pelos EUA ou a União Europeia – são os reais patrocinadores da atual condição palestina.

A solidariedade internacional ao povo palestino é potente e a liderança de direita em Israel sabe disso. Não é à tôa que a perseguição e tentativa de intimidação de solidários, sejam autoridades políticas, acadêmicos, jornalistas ou defensores dos direitos humanos, intensifica-se. O objetivo central é isolar e punir o povo palestino por ousar a resistir. Por isso, reafirmar a solidariedade, neste e em todos os outros dias, é uma necessidade inexorável, transformada em ação.



*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos, diretora de Comunicação do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz) e assessora da Presidência do Conselho Mundial da Paz.


Fontes: O Mundo & a Resistência , Cebrapaz e Portal Vermelho



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