Do triunfo à tortura
02/Julho/2008
O tratamento dado por Israel a um jovem jornalista palestino, ganhador de um prêmio, faz parte de um terrível padrão de atuação
por John Pilger
Duas semanas atrás concedi a um jovem palestino, Mohammed Omer, o Prêmio Martha Gellhorn de Jornalismo 2008. Criado em memória da grande correspondente de guerra estado-unidense, o preço destina-se a jornalistas que revelam a propaganda do establishment, ou "idiotices oficiais", como as chamava Gellhorn. Mohammed partilha o prêmio de £5.000 [€6.342] com Dahr Jamail. Com 24 anos, ele é o mais jovem vencedor. A sua condecoração pública diz: "Todos os dias ele relata de uma zona de guerra, onde também é um prisioneiro. Seu lar, Gaza, está cercado, privado de alimento, atacado, esquecido. Ele é uma testemunha profundamente humana de uma das maiores injustiças do nosso tempo. Ele é a voz dos que não têm voz". Sendo o mais velho de oito filhos, Mohammed viu a maior parte dos seus irmãos mortos ou feridos ou mutilados. Um bulldozer israelense esmagou a sua casa com a família lá dentro, ferindo seriamente a sua mãe. E ainda assim, diz um antigo embaixador holandês, Jan Wijenberg, "ele é uma voz moderada, instando a juventude palestina a não cultivar o ódio e a procurar a paz com Israel".
Levar Mohammed para Londres a fim de receber o seu prêmio foi uma grande operação diplomática. Israel tem um controle pérfido sobre as fronteiras de Gaza, e só com uma escolta da embaixada holandesa é que ele pôde passar. Na quinta-feira passada, ao voltar da sua jornada, ele devia encontrar-se na passagem (para a Jordânia) de Alleby Bridge com um responsável holandês, o qual o esperava do lado de fora do edifício israelense. Sem que percebesse Mohammed fora capturado pela Shin Bet, a infame organização israelense de segurança. Disseram a Mohammed para desligar seu telemóvel e remover a bateria. Ele perguntou se podia telefonar à escolta da embaixada e foi-lhe dito brutalmente que não. Um homem examinou a sua bagagem, escarafunchando seus documentos. "Onde está o dinheiro?", perguntou ele. Mohammed entregou-lhe alguns dólares americanos. "Onde estão as libras inglesas que você tem?"
"Percebi", disse Mohammed, "que estava à procura do dinheiro do prêmio Martha Gellhorn. Disse-lhe que não estava comigo. 'Você está mentindo', disse ele. Fui então cercado por oito oficiais do Shin Bet, todos armados. O homem chamado Avi ordenou-me que tirasse as calças. Eu já passara por uma máquina de raios X. Fiquei reduzido às minhas cuecas e disseram-me para tirar tudo. Quando recusei, Avi pôs a mão sobre a sua arma. Comecei a gritar: 'Por que está a tratar-me deste modo? Sou um ser humano'. Ele respondeu: 'Isto não é nada em comparação com o que você verá agora'. Ele sacou a arma, pressionando-a contra a minha cabeça e com todo o peso do seu corpo sobre o meu lado removeu à força as minhas cuecas. Ele fez-me então efetuar uma remexida espécie de dança. Outro homem, que estava a rir, disse: 'Por que você trouxe perfume? ' Respondi: 'São prendas para pessoas que amo'. E ele disse: 'Ah, então você tem amor na sua cultura? '
"Quando me ridicularizavam, eles deliciavam-se a zombar das cartas que havia recebido de leitores na Inglaterra. Estive sem água e comida e casa de banho durante 12 horas, e tendo sido mantido de pé as minhas pernas prendiam-se. Vomitei e desmaiei. Tudo o que me lembro é de um deles a enfiar, raspar e arranhar com as suas unhas a carne delicada por trás dos meus olhos. Ele escavou minha cabeça e enfiou seus dedos próximos dos nervos da audição entre a minha cabeça e o tímpano. O sofrimento tornou-se mais agudo quando ele enfiou dois dedos ao mesmo tempo. Outro homem tinha a sua bota de combate sobre o meu pescoço, pressionando-o no chão duro. Fiquei ali por mais de uma hora. A sala tornou-se uma jaula de sofrimento, ruído e terror".
Foi chamada uma ambulância e disseram-lhe para levar Mohammed para um hospital, mas só depois de assinarem uma declaração de indenização aos israelenses pelo seu sofrimento durante a sua custódia. O médico palestino recusou, corajosamente, e disse que contataria a escolta da embaixada holandesa. Alarmados, os israelenses deixaram que a ambulância seguisse. A resposta israelense foi na linha habitual de que Mohamed era "suspeito" de contrabando e "perdeu o equilíbrio" durante um interrogatório "regular", relatou ontem a Reuters.
Grupos israelenses de direitos humanos documentaram a rotina da tortura de palestinos por agentes do Shin Bet com "pancadas, amarrações penosas, inclinações para trás, estiramento corporal e prolongada privação do sono". A Anistia desde há muito relata a utilização generalizada de tortura por Israel, cujas vítimas emergem como meras sombras do que eram antes. Alguns nunca retornam. Israel está num lugar elevado na tabela internacional pelos seus assassinatos de jornalistas, especialmente jornalistas palestinos, que mal recebem uma fração da espécie de cobertura que foi dada a Alan Johnston da BBC.
O governo holandês diz que está chocado pelo tratamento de Mohammed Omer. O ex-embaixador Jan Wijenberb afirma: "Isto não é de modo algum um incidente isolado, mas parte de uma estratégia a longo prazo para demolir a vida social, econômica e cultural palestina... Tenho consciência da possibilidade de Mohammed Omer ser assassinado por atiradores israelenses ou por ataques a bomba no futuro próximo".
No momento em que Mohammed recebia o seu prêmio em Londres, o novo embaixador israelense na Grã-Bretanha, Ron Proser, queixava-se publicamente de que muitos britânicos já não apreciam a singularidade (uniqueness) da democracia de Israel. Talvez a apreciem agora.