Eles não apoiam o Estado de Israel. Mesmo vindo de famílias
judaicas tradicionais, seus corações e mentes são solidários à causa palestina.
Parentes e amigos reagem com rancor, mas este grupo de jovens rechaça as
crenças sionistas.
Foto: Sandra Caselato/Divulgação (8.ago.2014)
Grupo de jovens que rompeu com o sionismo protesta em frente
ao Consulado de Israel, em São Paulo
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Para além de um repertório cultural pouco comum entre os
judeus, os cinco chamaram atenção quando se reuniram, no dia 8 de julho, junto
com outros colegas, para repudiar a ação militar de Israel na Faixa de Gaza.
Diante do consulado desse país em São Paulo, ergueram cartazes de protesto que
horrorizaram parte da comunidade judaica.
Estes jovens, em roda de conversa com Opera Mundi, relataram
sua trajetória de contestação ao sionismo e a reação que sua atitude provoca
entre familiares. Discutiram também o que é ser judeu no século 21,
problematizando a proposta de dois Estados para dois povos e repensando a
própria existência de um lar nacional judaico encarnado por Israel.
“Queremos deixar claro, em nossa condição judaica, que não
compactuamos com a opressão ao povo palestino e o massacre de civis em Gaza”,
afirma Yuri Haasz. “Israel não atua em autodefesa, mas com a intenção de
ocupação territorial, para inviabilizar a criação de dois Estados.”
“Eu queria entender a raiva dos palestinos”
Yuri é o mais velho integrante deste recém criado grupo de
jovens que romperam com o sionismo. Nasceu
na cidade israelense de Haifa, em 1971. Seus pais, filhos de judeus imigrantes
que escolheram viver no Brasil, tinham retornado a Israel em 1967, a bordo de
um navio, porque acreditavam ter o dever de defender o país na guerra então
travada contra nações árabes. Quando chegaram, o conflito já tinha acabado,
após seis dias. Mas permaneceram até 1985, quando retornaram ao Brasil.
Quando estava em idade de serviço militar, Yuri repetiu o
movimento dos pais. Voltou a Israel por uma temporada e decidiu se alistar na
Força Aérea. Era a época da primeira Intifada, irrompida em 1987 e que se
estenderia até 1993. Tinha muitos pesadelos e, aos poucos, começou a se sentir
atormentado pela escolha que fizera, e decidiu retornar ao Brasil.
A tensão árabe-israelense, porém, se já não o animava a
pegar em armas, continuava a ser de seu interesse como estudo, para entender
sua lógica. “Li muito dos novos historiadores israelenses, autores da
sociologia crítica e acadêmicos pós-sionistas”, relata. “Eu queria entender a
raiva dos palestinos. Fui encontrar essas explicações em escritores como Avi
Shlaim, Ilan Pappe, Benny Morris e Tom Segev, que descreviam a criação do
Estado de Israel de forma antagônica à narrativa nacionalista convencional,
mostrando a expulsão dos árabes de suas terras e o processo de limpeza étnica
inerente à construção do Estado judaico.”
Yuri fez mestrado em Relações Internacionais, decidido a
estudar resoluções de conflito. Foi parar em Tóquio, já casado com Sandra
Caselato, uma brasileira goy (uma não-judia, em hebraico). A bolsa incluía uma
pesquisa de campo para passar seis meses em Jerusalém e nos territórios
palestinos ocupados na Cisjordânia.
“Foquei minha pesquisa
nos principais ativistas israelenses em ONGs de direitos humanos que
lutam por justiça social e histórica para os palestinos, e são altamente
críticas das políticas israelenses e como lidavam com sua educação sionista
padrão”, explica. “Alguns vinham de famílias religiosas ortodoxas, outros de
colônias nos territórios palestinos, e outros de famílias da esquerda sionista,
e quase todos tinham experiência militar. Viram absurdos que ocorriam nos
territórios palestinos, praticados pelas forças de segurança ou colonos
israelenses, e se sentiam em um conflito profundo entre tudo o que sua educação
os levou a acreditar, e a realidade em que se encontravam. Alguns entrevistados
confessaram tentativas de suicídio em meio à profunda confusão e depressão. Uma
situação dramática, na qual se perde a identidade que você sempre acreditou que
deveria ter.”
“O problema de fundo é o sistema erguido pelo sionismo”
“Apesar de não ser religioso, sou muito judeu”, brinca
Shajar Goldwaser, de 21 anos. Assim como Yuri, ele nasceu em Israel. Mais
precisamente, em Jerusalém. Aos quatro meses, partiu para Buenos Aires e em
2001 chegou a São Paulo, sempre frequentando escolas judaicas tradicionais.
“Volto para Israel ao menos uma vez por ano. Sempre falei hebraico em casa, é
minha língua materna”, conta.
O estudante de Relações Internacionais relata que um momento
decisivo para sua guinada crítica foi quando participou da Marcha da Vida, em
2011. Trata-se de uma viagem de duas semanas que engloba colégios judaicos de
todas as partes do mundo com o intuito de conhecer antigos campos de
concentração na Polônia e destinos sagrados em Israel.
“Na volta da viagem, a professora pediu para escrevermos uma
redação e ‘A hipocrisia judaica’ foi o título que dei a meu trabalho”, relata
Goldwaser. “A viagem me fez questionar se o sentimento dos palestinos não
seria, atualmente, o mesmo dos judeus naquela época.”
Saindo do armário
“Falar que deixou de ser sionista, na maioria dos ambientes
judaicos, é como sair do armário: você já sabe, sempre sentiu, mas quando fala
para a família, é pura tensão”, brinca a socióloga Elena Judensaider, de 22
anos.
Embora tenha frequentado o clube Hebraica na infância, Elena
se desligou da instituição após a separação dos pais e se afastou da
convivência com a comunidade judaica. Por muito tempo manteve-se distante de
qualquer discussão sobre o tema Israel-Palestina.
“Sabia que, se fosse enfrentar esta questão, iria me
incomodar com suas contradições”, relata Elena. “Um dia, porém, acordei assim,
do nada, e decidi estudar esse conflito – e meu trabalho de conclusão do curso
foi sobre isso. Minha opinião era clara: o Estado de Israel era a origem de
tanto ódio e sofrimento do povo palestino.” Lembra-se que não demorou a sofrer
retaliações, na medida em que começou a difundir suas opiniões críticas nas
redes sociais.
“Uma amiga de infância colocou mensagens em hebraico, no
mural do meu Facebook”, recorda. “Eram frases do tipo ‘você tem que morrer com
esses terroristas’. Até uma prima me ligou chorando e berrando que eu era
antissemita.”
Sua relação com a mãe, porém, passou por transformações
positivas. “Nunca tínhamos conversado a respeito de Israel”, conta Elena.
“Quando eu passei a estudar sobre o tema, ela via os filmes e lia os livros que
eu deixava no meu quarto. Um dia, escreveu em seu blog que, pelo exemplo da
filha, tinha mudado a cabeça em seis meses sobre temas que tinha acreditado por
40 anos.”
“Pra quê você foi para a Palestina?”
Ao contrário de Elena, a professora de história Bianca
Neumann Marcossi, de 25 anos, teve uma formação sionista forte. Após o suicídio
da mãe e do pai, a comunidade judaica foi um dos seus principais alicerces.
“Aprendi na escola que tinha que salvar Israel e tinha pesadelos com
palestinos”, relata.
A mudança viria ao ingressar no curso de história, na USP (Universidade
de São Paulo). O ambiente crítico às atitudes tomadas pelo governo de Israel
foi um verdadeiro choque. “Fiquei assustada. Ou eu estava no meio de
antissemitas e precisava sair dali ou era a ignorante e precisava estudar”,
conta.
Durante a formação universitária, Bianca descobriu um
programa que tinha como objetivo levar pessoas estrangeiras para passar uma
temporada na Cisjordânia e reportar os problemas da região para ONGs de
direitos humanos. “Estar na Palestina mudou tudo. Ficou tudo muito claro. Ver
as leis da ocupação, as terras roubadas. Sofri bastante”, suspira.
O problema mesmo viria depois da excursão. Bianca dava, à
época, aulas de História Geral em um colégio judaico. Quando voltou da viagem
aos territórios ocupados, foi informada que tinha sido demitida. A direção da
escola não lhe deu satisfações sobre os motivos, mas descobriu que muitos pais
pediram para ela ser afastada. “Foi um
choque muito grande quando voltei. Eu tinha tanto a dizer, mas ninguém queria
ouvir minhas histórias”, conta.
“Nem vamos conversar que vai dar merda”
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O espaço para discutir sobre a vivência na região também
afetou o jornalista e mestre em Relações Internacionais Bruno Huberman, de 26
anos. Ele conta que em 2011 foi pela primeira vez a Israel por meio do Taglit,
uma excursão de 10 dias organizada por entidades judaicas. “Foi uma imersão
sionista, uma lavagem cerebral”, classifica.
Huberman aproveitou a viagem para fazer um especial sobre
territórios palestinos para a revista Carta Capital. “Foi o primeiro choque.
Muitos primos me xingaram”, conta. A tensão na família piorou depois do ato
diante do consulado. “Fui ao aniversário de uma priminha e minha tia já veio
falando: ‘nem senta aqui, nem vamos conversar que vai dar merda’.”
Como a recusa ao sionismo é encarada como uma verdadeira
subversão, situações como essas com familiares e amigos fazem parte da rotina
de Yuri, Shajar, Elena, Bianca e de Bruno. “Eles não querem entrar em uma
discussão sobre o conflito. Se entrarmos em uma conversa mais profunda, nem sei
aonde isso vai chegar”, rebate Bruno.
Voz dissidente
Aos poucos estes cinco jovens judeus, ao lado de mais duas
ou três dezenas de outros colegas com trajetórias similares, foram se agrupando
para estudar coletivamente o tema e organizar sua participação no debate dentro
da comunidade.
O primeiro espaço no qual se aglutinaram foi no Forum 18,
surpreendentemente incentivado pela B’nai B’rith, a mais antiga organização
sionista e dedicada a temas de direitos humanos. Disposta a enfrentar o debate
sobre um conflito que permeia a juventude judaica no Brasil, a entidade
resolveu abrir uma série de seminários que abrigassem as distintas narrativas
sobre Israel e a questão palestina. Incluindo os pontos de vista não-sionistas.
“Aqueles que haviam rompido com o sionismo foram criando uma
nova identidade, dissidente da posição majoritária na comunidade”, explica Yuri
Haasz. “Não nos definimos por uma solução específica para o problema, ainda que
sejamos favoráveis à autodeterminação palestina. A verdade, porém, é que não
acreditamos no comprometimento de Israel com essa solução. Dentre as várias
correntes que existiram no início do movimento sionista, a que se consolidou e
deu forma ao Estado foi a corrente que promove a exclusividade judaica, o
expansionismo e a colonização, e é contrária à existência de um Estado
palestino. Muita gente se assusta, mas essa situação nos faz entender
claramente a resistência do povo palestino.”
Fotos: Mikhail Frunze/Opera Mundi
Elena, Shajar, Yuri, Bianca e Bruno: eles romperam com o
sionismo e apoiam a causa palestina
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O grupo não tem nome, mas se identifica com grupos como o
Jewish Voice for Peace, que nos EUA já conta com milhares de apoiadores da
comunidade judaica. Vários de seus integrantes trabalham em programas de
educação focados em direitos humanos, como a FFIPP (antiga Faculty for
Israeli-Palestinian Peace, renomeada como Educational Network for Human Rights
in Palestine/Israel). A associação organiza anualmente estágios com ONGs de direitos humanos nos Territórios
Palestinos Ocupados e em Israel, para quem quiser conhecer de perto a realidade
do conflito, a partir de um roteiro que se desafia a narrativa oficial
Israelense.
“Nós trabalhamos e nos organizamos para denunciar os crimes
cometidos pelo Estado de Israel”, afirma Haasz. “Queremos que mais judeus
possam enxergar o que se passa e romper com dogmas de sua formação, abrindo-se
para a solidariedade anticolonial com o povo palestino, na busca por soluções
na região que atendam à dignidade de todos, tanto judeus quanto
palestinos."
Leia também: Judaísmo não é sionismo, por Breno Altman
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