quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Encruzilhada palestina

Encruzilhada palestina
Por Gabriel Matyias*

Fonte: http://www.stopthewall.org/convergence-plan-map-reframing-palestinian-ghettos


Primeiramente, para adentrar Israel, qualquer estrangeiro é passível de passar pelas rigorosas medidas de segurança seja no aeroporto de Ben Gurion, seja numa de suas fronteiras terrestres. Entretanto, excetuando aqueles que são identificados como “potenciais ameaças” (nisso ativistas estão inclusos) os estrangeiros não-árabes ou não-muçulmanos tendem a passar por dificuldades não muito maiores do que em geral passam pessoas de países considerados subdesenvolvidos quando viajam para aqueles considerados desenvolvidos. Porém, para adentrar os territórios, pode pegar tanto os ônibus utilizados por palestinos com visto de entrada para Israel, quanto aqueles para israelenses dentro da Cisjordânia, nos quais não é permitida a entrada de nenhum palestino.

Hoje, 15 de novembro, dia em que celebramos no Brasil a Proclamação da República, marca também um acontecimento importante para o povo palestino. Nesse mesmo dia, em 1988, foi declarado pelo Conselho Nacional Palestino a Independência da Palestina. Passados 23 anos dessa declaração, os palestinos ainda buscam o reconhecimento internacional através de uma vaga como estado-membro na ONU para obterem um Estado viável e independente, dentro das fronteiras anteriores a guerra de 1967. Isso significa, primeiramente, um país com um território exíguo e divido em duas partes principais desconectas: a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Enquanto essa está totalmente cercada, sendo considerada a maior prisão a céu aberto do mundo, aquela está internamente fragmentada, sem contigüidade territorial devido à infra-estrutura civil e militar israelense construída ao longo de mais de 40 anos de ocupações, sobretudo para o benefício de um punhado de colonos e seus assentamentos, o que é ilegal perante a lei internacional. Portanto, o que poderia significar a criação de um Estado independente diante das atuais circunstâncias? Minha recente experiência pessoal como voluntário por três meses nos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia permitiu-me perceber em que sintonia se encontra essa discussão em relação a realidade cotidiana da ocupação.

Essa contradição fica ainda mais clara ao sair dos territórios sob ordem militar israelense, pois caso um estrangeiro resolva tomar um ônibus israelense, poderá atravessar diretamente, sem ser parado em nenhum momento, mas o mesmo não acontecerá se utilizarem um meio de transporte para palestinos. Nenhuma das vans utilizadas para transporte público dos palestinos dentro da Cisjordânia (excluindo Jerusalém oriental) pode atravessar livremente os vários postos de controle que, juntamente com a barreira de separação, dividem os territórios israelenses daquele dos palestinos. Para um palestino ir dessa àquele, ele deve descer de seu carro ou de sua vã e adentrar um posto de controle, passando por portas giratórias, detectores de metal, raio-X para bagagens, etc. Aos mais afortunados, é possível tomar um ônibus especial, caso ele tenha o visto apropriado, e atravessar sem passar pelo posto de controle. Para os ainda mais afortunados, as autoridades israelenses podem conceder uma licença e uma placa israelense para o seu carro. Excetuando os palestinos que possuem uma carteira de residente permanente em Jerusalém, esses últimos dois casos são a exceção a regra para maioria esmagadora dos palestinos.

Mas o que acontece se resolverem tomar um ônibus israelense dentro da Cisjordânia? Essa alternativa foi testada hoje por seis ativistas palestinos e todos foram presos. Um deles, Badia Dwaik, é um amigo pessoal e um contato importante para o trabalhado vários voluntários internacionais em Hebron (AL-Khalil em árabe), da qual fui parte. Ele jamais pegou em armas e sempre foi um defensor da resistência não-violenta e da cooperação com organizações e indivíduos israelenses que buscam acabar com a ocupação. Não foi a primeira vez que foi preso por seu ativismo político, pois mesmo legalmente, os palestinos têm direitos extremamente restritos para se manifestarem. A ordem militar israelense 101 considera ilegal nos territórios palestinos ocupados qualquer reunião com um número maior de dez pessoas no qual um discurso político está sendo proferido ou qualquer outro discurso que possa vir a ser político. Mesmo ativistas israelenses dentro dos territórios acabam ficando sujeitos a essas ordens, embora serão apenas detidos ou presos como israelenses. Para um palestino, um ato de desobediência civil como esse pode resultar em seu aprisionamento durante vários anos, algo que jamais aconteceria com um israelense. A atual conjuntura política não se mostra muito favorável a esse tipo de medida draconiana para com esses ativistas que receberam grande atenção da mídia. Não creio que Israel arriscará desgastar ainda mais sua imagem internacional e, provavelmente, logo eles serão todos soltos.

Parece algo simples, apenas uma questão de ônibus diferentes, mas esse fato sintetiza a realidade da ocupação na Cisjordânia e o quão fragmentado encontra-se seu território. Lembro-me de que, quando atravessava a divisão entre Jerusalém oriental e o resto da Cisjordânia, os caminhos variavam muito dependendo do local de onde vinha. Se viesse de Hebron, poderia tomar um taxi ou uma vã especial que passava direto, mas não estava sempre disponível e custava o dobro do preço da outra alternativa, que era tomando uma vã normal para Beit Jala e de lá para Jerusalém. Por essa alternativa, poderia tomar um ônibus especial em Beit Jala que passaria por um outro ponto do posto de controle de Gilo, onde só era necessário descer do ônibus, andar em uma fila, enquanto a polícia de fronteira checava o ônibus, passar por uma porta giratória e voltar para o ônibus. Se escolhesse a opção mais barata, eu poderia tomar uma vã normal em Hebron que pararia na entrada do posto de controle de Gilo. Aí teria de atravessá-lo como qualquer outro palestino, exceto que não os soldados não me trariam como tal.

Caso viesse pelo norte da Cisjordânia para Jerusalém Oriental, pelo posto de controle de Qalandya, teria somente duas opções. Uma seria atravessar o posto como qualquer outro palestino, só sendo diferente o tratamento que receberíamos por parte das forças de segurança. A outra seria através de um ônibus especial que me deixaria em uma fila, onde passaria por uma porta giratória, por um detector de metais, por uma máquina de raio-X para bagagem e por uma cabine onde um ficava um soldado atrás de um vidro à prova de bala, que pediria para que eu lhe mostrasse o passaporte. Depois sairia passando por outra porta giratória e tomaria outro ônibus, pois aquele que tomei já teria partido, mas poderia utilizar o mesmo bilhete de passagem. Havia também a possibilidade para estrangeiros, tanto para quem vem do sul, quanto para quem vem do norte, de utilizar outros postos de controle que ficam no sinuoso caminho entre as íngremes colinas da Judéia, a leste de Jerusalém. Isso consumiria tempo e dinheiro, sendo necessário por vezes tomar três ônibus diferentes.

Mas qual a finalidade de tal estrutura de controle? A resposta mais comum, claro, é a questão da segurança, dos ataques suicidas de militantes palestinos contra civis israelenses. Diante dessa reposta pode-se lança a pergunta: afinal, por que a barreira de separação atravessa os territórios palestinos e incorpora uma população de quase meio milhão de palestinos dentro dos territórios de Israel se a finalidade era a segurança? Por que a barreira não segue a linha verde (as fronteiras antes da Guerra de 1967)? Qualquer resposta deixaria claro um fato: que há uma parte da população israelense vivendo nos territórios ocupados, o que, como já foi mencionado, viola à lei internacional de acordo com a Quarta Convenção de Genebra de 1948. E o que significa essa população vivendo nesses territórios? Significa tudo que já foi dito acima: ônibus segregados; barreiras separando cidades e vilas palestinas; leis diferentes para dois povos vivendo num mesmo território; etc. Então, como factualmente criar um Estado independente e contíguo dentro dessas fronteiras, quando a força ocupante já o dilacerou em vários pedaços, isolou 40% da área de qualquer acesso a seus habitantes, instalou uma população de colonos israelenses que hoje já somam por volta de meio milhão de pessoas e construiu para esses uma infra-estrutura mais conectada a Israel do que ao “resto” da Cisjordânia?

Não é fácil responder essa questão, porém, como qualquer um que vá a Cisjordânia hoje pode perceber, a grande maioria dos palestinos apóia a iniciativa da Autoridade Palestina, apesar de serem céticos quanto a que mudanças positivas poderão advir dela. Mas então para que serviria? Para muitos é o pouco que se pode fazer para conseguir ao menos que num futuro não muito distante um local que ainda possa-se chamar de Palestina. Não importa para a maioria deles qual serão os meios e os detalhes de uma solução para o conflito, desde que seja uma solução justa. Muitos querem a existência de um Estado palestino mesmo que seja apenas pró-forma e a realidade continue desafiando essa iniciativa, pois o reconhecimento formal como Estado perante a comunidade internacional poderia fortalecer e dar bases legais mais amplas e concretas para reivindicação dos palestinos. Seria um passo a frente na estrada para autodeterminação, para a qual os palestinos lutam há mais de meio século.

*Gabriel Matyias, Historiador. Esteve nos Territórios Ocupados da Palestina recentemente em missão de solidariedade pela  EAPPI.

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