Freud, que manteve uma correspondência com Einstein sobre a
guerra e as pulsões que levam os homens a matar e exterminar seus semelhantes,
nunca defendeu o sionismo.
Pelo que vemos se desenhar no horizonte com a nova aliança
Trump-Netanyahu - que no encontro de ontem, em Washington, prepararam o mundo
para o fim do sonho de criação do Estado Palestino - a caixa de Pandora está
prestes a ser aberta. Em Israel, uma multidão de fundamentalistas fanáticos
prega a demolição da Mesquita de Al-Acqsa, em Jerusalém, para a construir no
local o novo Templo de Salomão.
Ora, essa mesquita é o terceiro lugar mais sagrado do Islã e
foi construída no século VII, onde Maomé teria sido arrebatado ao céu.
O roteiro do apocalipse pode estar começando a ser escrito,
uma vez que os países muçulmanos não vão ver a destruição da mesquita Al-Acqsa
de braços cruzados. Sem falar do projeto de Trump de transferir a embaixada
americana para Jerusalém. Como se sabe,
a parte Leste da cidade, hoje ocupada por Israel, seria a capital do
sempre adiado Estado Palestino.
Freud, que manteve uma correspondência com Einstein sobre a
guerra e as pulsões que levam os homens a matar e exterminar seus semelhantes,
nunca defendeu o sionismo.
Ao contrário, manifestou-se contra a criação de um Estado
para os judeus na Palestina. Uma carta na qual ele expressa claramente sua
pouca simpatia pelo projeto sionista foi escondida deliberadamente durante
décadas pelos defensores da causa sionista.
As cartas de Freud são um capítulo à parte na sua obra. A
maior parte delas é conhecida e estudada exaustivamente. Um terço das cartas,
classificadas como confidenciais por seus descendentes e herdeiros, faz parte
do “Arquivo Freud” e encontra-se na Biblioteca do Congresso, em Washington.
A carta em que Freud faz restrições ao sionismo foi escrita
em 26 de fevereiro de 1930 e endereçada a Chaim Koffler, membro da Fundação
para a Reinstalação dos Judeus na Palestina (Keren Hayesod). Koffler havia
pedido a Freud, como a outros intelectuais judeus, um texto de apoio à causa
sionista.
Traduzida por Jacques Le Rider para o francês, ela foi
publicada pela revista Le Nouvel Observateur em dezembro de 2004, depois de ter
sido revelada pelo jornal italiano Corriere della Sera, em julho de 2003. Em 1978, fora citada em inglês num artigo
dedicado a Freud e a Herzl e em 1991, depois de ter sido mencionada em uma
revista semanal argelina para mostrar que Freud não tinha simpatia pelo
sionismo, ela foi finalmente traduzida em inglês pelo psicanalista americano
Peter Loewenberg, para provar que Freud fora vencido pela História.
Nenhum olho humano deve ler essa carta
O texto da carta mostra o quanto Freud era cético em relação
ao projeto sionista de reinstalação dos judeus na Palestina. Por isso mesmo,
ela foi cuidadosamente escondida por tanto tempo para cumprir a promessa de
Abraham Schwadron a Koffler de que “nenhum olho humano a veria”. Dada a
autoridade moral do autor, a carta poderia ser uma pedra no caminho dos que
construíam o projeto sionista.
Em um dos trechos, Freud diz: “não penso que a Palestina
possa vir a tornar-se um Estado judaico”. Como lembra a historiadora da
psicanálise Elisabeth Roudinesco, Freud combatia todas as formas de religião,
inclusive o judaísmo. “Ele aceitava dificilmente a idéia de um Estado judaico
viável, pois tal Estado feito por e para os judeus não poderia ser, no seu
entender, um Estado secular”.
No final da carta, Freud fala do sionismo como de “uma
esperança injustificada” e diz que não se sente capaz de exercer o papel de
consolador de um povo “perturbado” por essa esperança.
Eis o texto que traduzo para o português a partir da
tradução francesa de Le Rider:
Viena, 19 Berggasse,26 de fevereiro de 1930.
Senhor Doutor,
Não posso fazer o que o senhor deseja. Minha dificuldade em despertar o interesse do público por minha personalidade é impossível de superar e as circunstâncias críticas atuais não me parecem favorer essa empreitada. Quem quer influenciar o maior número de pessoas deve ter algo de empolgante a dizer, e isso meu julgamento pouco entusiasmado pelo sionismo não me permite. Tenho com certeza os melhores sentimentos de simpatia pelos esforços consentidos livremente, sinto-me orgulhoso pela nossa universidade de Jerusalém e me regozijo da prosperidade dos estabelecimentos dos nossos colonos. Mas, por outro lado, não penso que a Palestina possa vir a tornar-se um Estado judaico nem que o mundo cristão, como o mundo islâmico, possam um dia estar dispostos a confiar seus lugares santos aos cuidados dos judeus. Me pareceria mais sensato fundar uma pátria judaica sobre um solo não conotado historicamente; decerto, sei que para um objetivo tão racional, jamais seria possível suscitar a exaltação das massas nem a cooperação dos ricos. Admito também, com pesar, que o fanatismo irrealista de nossos compatriotas tenha sua parte de responsabilidade no despertar da desconfiança dos árabes. Não posso ter a mínima simpatia por uma piedade mal interpretada que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia nacional e por causa dela desafie os sentimentos dos habitantes da região.
Julgue o senhor mesmo se, com um ponto de vista tão crítico, eu posso ser a pessoa certa para fazer o papel de consolador de um povo perturbado por uma esperança injustificada. Freud.
Dezessete anos depois de escrita a carta, o Estado de Israel
deixou de ser um sonho dos sionistas para se tornar realidade.
Lugares santos no centro da querela
Mas quem pode dizer que Freud não anteviu a catástrofe?
Elisabeth Roudinesco assinala que “Freud teve a intuição
magistral de que a questão da soberania dos lugares santos estaria um dia no
centro de uma querela quase insolúvel, entre os três monoteísmos. Ele temia,
com razão, que “uma colonização abusiva acabasse por opor, em torno de um
pedaço de muro idolatrado, os árabes fanáticos e anti-semitas aos judeus
fundamentalistas e racistas”.
Num magnífico artigo publicado no jornal Le Monde de 18 de
agosto de 2006, o filósofo Etienne Balibar e o físico Jean-Marc Lévy-Leblond
percorrem a história de Israel para analisar a atualidade política do Oriente
Médio e todas as ameaças que pesam sobre o mundo, em função do barril de
pólvora em que se transformou a região.
No terceiro parágrafo do brilhante texto, os dois
intelectuais escrevem: “A segunda guerra mundial foi um ponto de ruptura: ela
trouxe o enfraquecimento do império britânico e levou à Palestina centenas de
milhares de pessoas que escaparam à exterminação dos nazistas. O que conferiu
ao Estado de Israel, criado pela “partilha” de 1947, uma nova legitimidade
moral, sancionada pelo reconhecimento internacional quase unânime e pela
admissão às Nações Unidas. O que não impede que o Estado que se proclamou como
“Estado judaico” (apesar da presença em seu seio de uma grande minoria árabe
muçulmana e cristã) e se deu por missão reunir no seu solo o maior número
possível de judeus religiosos ou leigos do mundo inteiro (imigrantes recentes
ou assimilados há muitos anos em seus países respectivos, vindos de culturas
diversas e sendo vítimas de anti-semitismo em graus muito diferentes) tenha
nascido na guerra e mesmo no terrorismo. Isso por causa da hostilidade
irredutível (ao menos até a iniciativa do presidente Sadat) dos Estados árabes
que o cercavam, por causa do próprio nacionalismo e panarabismo ascendente que
os levavam a recusar a instalação de Israel na Palestina, depois a desejar sua
destruição e padecer sua intenção simétrica, mais ou menos confessada, de
expulsar a população árabe autóctone.
Balibar e Lévy-Leblond continuam: “A frase de Golda Meir:
‘uma terra sem povo para um povo sem terra’ – em total contradição com a
realidade – trazia em si uma lógica de eliminação, que continha em germe os
elementos da catástrofe atual. Essa lógica de eliminação foi imediatamente
denunciada por certos intelectuais (como Einstein, Buber, Arendt ou o fundador
da universidade hebraica de Jerusalém, Judah Magnes)”.
* Leneide Duarte-Plon é autora de « A tortura como arma de
guerra-Da Argélia ao Brasil : Como os militares franceses exportaram os
esquadrões da morte e o terrorismo de Estado » (Editora Civilização Brasileira,
2016)».
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