Por Pepe Escobar, do
Asia Times Online | Tradução:
Coletivo VilaVudu
Fúria, fúria, contra a morte da luz.
- Dylan Thoma
Islamófobos de todo o mundo calem o bico e ouçam o som do poder do povo. A dicotomia artificial que inventaram para o Oriente Médio – ou a ditadura de vocês ou o
jihadismo – jamais passou de truque barato. Repressão política, desemprego em massa e comida cara são mais letais que um exército de homens-bomba. Assim se escreve a história real; um país de 80 milhões – dois milhões dos quais nascidos depois de o ditador de hoje ter chegado ao poder em 1981, e nada menos que o coração do mundo árabe – põe afinal abaixo o Muro do Medo e passa para o lado do autorrespeito.
O neofaraó egípcio Hosni Mubarak ordenou toque de recolher; ninguém arredou pé das ruas. A polícia atacou; os cidadãos organizaram a própria segurança. Chegaram os tanques; a multidão continuou a cantar “de mãos dadas, o exército e o povo são aliados”. Nada de revolução colorida parida em
think-tanks, nada de islâmicos em ordem unida; são egípcios médios, carregando a bandeira nacional, “juntos, como indivíduos num grande esforço cooperativo para exigir de volta o país que nos pertence” – nas palavras do romancista egípcio e Prêmio Nobel Ahdaf Soueif.
E então, inevitável como a morte, a contrarrevolução levantou a cabeçorra armada. Jatos bombardeiros
made in USA e helicópteros militares atacaram “bravamente” em voos rasantes as multidões na Praça Tahrir [Praça Liberdade] (retrato do governo de Mubarak como exército de ocupação no Egito; e imaginem o ultraje do ocidente, se o ataque acontecesse em Teerã). Comandantes militares falando sem parar pela televisão estatal. Ameaça de que tanques de fabricação norte-americana tomariam as ruas – conduzidos por soldados de batalhões de elite – para o ataque final (embora os próprios soldados dissessem a jornalistas da rede al-Jazeera que em nenhum caso disparariam contra a multidão). Para coroar, a “subversiva” rede al-Jazeera foi repentinamente cortada do ar.
Diga alô ao meu suave torturador…
A Intifada egípcia – dentre outros múltiplos significados – já reduziu a cacos a propaganda inventada no ocidente, de que “árabes são terroristas”. Agora, as mentes afinal descolonizadas, os árabes inspiram o mundo inteiro, ensinam ao ocidente como se faz mudança democrática. E adivinhem só! Ninguém precisou de “choque e horror”, rendições, tortura e trilhões de dólares do Pentágono para que a coisa funcionasse! Não surpreende que Washington, Telavive, Riad, Londres e Paris, todas, nem suspeitaram do que estava a caminho.
Hoje somos todos egípcios. O vírus latino-americano –
bye-bye ditaduras e neoliberalismo arrogante, caolho, míope – contaminou o Oriente Médio. Primeiro a Tunísia. Agora o Egito. Depois o Iêmen e possivelmente a Jordânia. Logo a Casa de Saud (não surpreende que culpem os egípcios pelos “tumultos”). Mas o terremoto político do norte da África, na Tunísia, em 2011 também colheu a faísca dos movimentos de massa na Europa em 2010 – Grécia, Itália, França, Reino Unido. Fúria, fúria contra a repressão política, contras as ditaduras, contra a brutalidade da Polícia, contra os preços da comida, contra a inflação, contra empregos miseráveis, contra o desemprego em massa.
Faraó 2011 parece
remix de Xá do Irã 1979. Claro, não há aiatolá Ruhollah Khomeini para liderar as massas egípcias, e o ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio Mohamed ElBaradei, está sendo acusado por alguns, nas ruas, de “assaltar nossa revolução”. Mas é difícil não lembrar que o Xá do Irã está enterrado no Cairo, porque os iranianos não permitiram que fosse enterrado na terra-mãe.
O Faraó reagiu à Intifada nomeando para a vice-presidência seu czar “suave” da inteligência, Omar Suleiman (o primeiro vice-presidente, desde que o Faraó assumiu o poder em 1981), e virtual sucessor. Suleiman é sinistro suave especialista em rendição, no qual a CIA confia e que supervisionou número incontável de sessões de tortura de ditos “terroristas” em território egípcio; senhor, que fala inglês, de sua Guantánamo árabe. Em Washington, o
establishment gostou muito.
Mas os imperialistas que anotem bem: a última vez que as ruas egípcias levantaram-se como levantaram-se hoje, foi em 1919, durante a revolução contra os britânicos. Agora, para muçulmanos e cristãos, operários, classe média, massas desempregadas, advogados, juízes, professores e doutores da Universidade
al-Azhar, alunos, camponeses, teólogos, jornalistas e blogueiros independentes, ativistas da Irmandade Muçulmana, Associação Nacional para a Mudança, Movimento 16 de abril, para todos esses, os dias de Mubarak de
Revolução dos Bichos estão contados.
Cinco movimentos de oposição – inclusive a Fraternidade Muçulmana – autorizaram ElBaradei a negociar a formação de um “governo de salvação nacional” de transição. Aposta-se que o Faraó nada ou quase nada negociará. Para aumentar a complexidade o núcleo da geração de jovens ativistas crê muito mais em “comitês populares” que em ElBaradei.
É verdade que, no que tenha a ver com as próximas eleições em setembro, Mubarak, 82, está morto. O filho, Gamal, 47, idem. Relatos não confirmados dizem que, à moda típica dos filhos de ditadores, o filho já fugiu para Londres, usando seu passaporte britânico, com montanhas de bagagem, e estaria agora escondido na casa londrina da família, em Knightsbridge.
O futuro crucial imediato depende do lado para o qual penderá o exército egípcio. No pé em que estão as coisas, ainda não está totalmente afastado uma alternativa
Tiananmen – repressão linha duríssima. Seja como for, o poder de ação do governo é claro; pode acontecer até de o Faraó meter-se naquele avião – como cantam as ruas –, mas o regime, a ditadura militar, tem de ser mantida.
O general Hussein Tantawi, comandante em chefe do exército e ministro da Defesa, amigo que bebe o vinho e come a comida do Pentágono, do qual recebe 1,3 bilhão de dólares anuais a título de “ajuda” – voou de volta ao Cairo. Numa trilha paralela, o Faraó, jogando desesperadamente com os medos do ocidente sobre “estabilidade”, tentou desqualificar a Intifada como grupo de desordeiros e arruaceiros donos de terrenos nas favelas, que querem ver cada vez mais caos e destruição. Um grupo de blogueiros egípcios não tem dúvidas – a estratégia do Faraó é assustar as pessoas e empurrá-las de volta para dentro das casas, implorando por “segurança”.
Issander El Amrani, do blog
The Arabist (
http://www.arabist.net/), destaca que “é difícil acreditar que Mubarak ainda esteja no poder, mas o núcleo duro do regime está usando meios extremos para salvar sua posição”. Nas ruas, todos suspeitam de um golpe orquestrado por Washington na cúpula do regime – EUA/Israel apostando tudo na fórmula “Mubarak talvez caia/mas sem mudança de regime”, com sauditas, israelenses e a mídia egípcia oficial mexendo todos os pauzinhos para desacreditar a revolução. Para analisar com algum distanciamento: nos EUA houve dois governos de Ronald Reagan, um de George H W Bush, dois de Bill Clinton, dois de George W Bush e um de Barack Obama. No Egito, sempre só houve Mubarak.
A classe média egípcia, empobrecida mas letrada e orgulhosa, e a os trabalhadores, nada querem além de um país regido por leis e com eleições transparentes. Como, então, acreditariam em Suleiman, torturador ligado à CIA, para conduzir a transição? Para nem falar de um Parlamento completamente controlado pelo inacreditavelmente corrupto Partido Nacional Democrático de Mubarak, cuja sede foi incendiada pelos manifestantes.
O passo do dissidente egípcio
No início de 2003, passei dois meses no Cairo e em Alexandria, à espera da invasão de Bush ao Iraque – convivendo quase exclusivamente com o oceano de rejeitados pelo sistema de Mubarak, de universitários formados a imigrantes sudaneses, inclusive representantes rejeitados dos 40% da população que vive com menos de 2 dólares por dia. Desnecessário dizer que todos viam Mubarak como poodle repulsivo de Washington – e todos estavam em choque ante a tragédia do Iraque, que o Egito reverencia historicamente como flanco leste da nação árabe. O regime, para eles, era do tipo que “afoga mendigos no Nilo”.
Foi elucidativo – e terrivelmente doloroso – conhecer em campo as consequências do regime de Mubarak, aplicado regime pupilo do neoliberalismo aplicado pelos EUA. Consequências inevitáveis, a inflação alta e o enorme desemprego. A classe média urbana praticamente já desaparecera. A classe trabalhadora, sufocada na mão de ferro dos sindicatos. E a classe média rural – que foi base do regime – também em crise, com os jovem obrigados a imigrar para as cidades à procura de empregos (que não encontram). Sobrevivente, só uma pequena classe de comerciantes, corruptos, associados ao Estado (a maioria dos quais hoje já fugiu para Dubai em jatos privados).
Não surpreende pois que não se trate de uma revolução islâmica, como no Irã em 1979. É a economia, estúpido. O Islã hoje no Egito está dividido em duas correntes: salafitas não politizados e a Fraternidade Muçulmana – dizimada por décadas de repressão e tortura e, hoje, sem qualquer programa político explícito, além de oferecer serviços de assistência à população negligenciada pelo Estado.
O fato de a Fraternidade Muçulmana ter-se mantido nas coxias do movimento das ruas explica-se por dois fatores. Se se expusesse demais, Mubarak teria o pretexto perfeito para associar a revolução aos “terroristas”. Além disso, a Fraternidade avalia que, hoje, é apenas um ator entre vários.
Trata-se de movimento popular espontâneo que segue as pegadas do
Kefaya (“Basta!”) – movimento popular “amarelo” (escolheu essa cor), de intelectuais e ativistas políticos, cujo slogan, já em 2004 era
La lil-tamdid,
La lil-tawrith (“Não a outro mandato, não queremos uma república hereditária”) [mais, sobre o movimento, em
http://en.wikipedia.org/wiki/Kefaya].
O movimento Kefaya, apesar de ser movimento de elite, sem liderança, não-ideológico, foi a faísca que despertou mais de mil movimentos, dentre os quais “Jornalistas pela Mudança”, “Operários pela Mudança”, “Médicos para a Mudança” ou “Jovens para a Mudança” levaram à atual onda de incontáveis fóruns online em que se reúnem cidadãos urbanos, de classe média e baixa, todos usuários experientes da internet.
Outro desenvolvimento crucial foi a greve, em 2008, dos trabalhadores das indústrias têxteis da cidade de Mahalla al-Kubra no delta do Nilo, onde três operários foram mortos pelos guardas de segurança de Mubarak dia 16 de abril –, e que inspirou a criação do movimento online de mesmo nome (Facebook. Sobre o movimento, ver
http://www.wired.com/techbiz/startups/magazine/16-11/ff_facebookegypt ).
O Santo Graal demorou para mobilizar as massas. Semana passada, afinal, conseguiram. Os jovens influenciados pelo movimento Kefaya preferem comitês populares para guiar os passos futuros de sua revolução, em vez de políticos. O pulso das ruas parece indicar que a maioria dos egípcios não querem que nenhuma ideologia política ou religiosa monopolize o que é movimento líquido, pluralista, múltiplo para reformar radicalmente o país e criar ali um novo modelo para o mundo árabe. Talvez um pouco sedutoramente romântico demais. Mas que tenha vivido 30 anos numa espécie de
Revolução dos Bichos precisa dolorosamente de alguma catarse.
Rebelo-me, logo, existo [Albert Camus]
Para Fawaz Gerges, professor de economia da London School of Economics, tudo isso “ultrapassa em muito o problema Mubarak. A barreira do medo foi removida. É realmente o começo do fim do status quo na Região.” Que é maior que Mubarak, é; é exemplo vigoroso do que seja ativismo político orgânico, de base.
Ora, no discurso de elite do Dr. Zbigniew Brzezinski, guru de política exterior dos EUA, trata-se de seu temido “despertar político global” em ação – a Geração Y em todo o mundo em desenvolvimento, furiosa, irada, ultrajada, emocionalmente em frangalhos, quase toda desempregada, com a dignidade em farrapos, deixando aflorar seu potencial revolucionário e virando o status quo de cabeça para baixo (mesmo depois de o Faraó ter conseguido implantar o maior blecaute da história da Internet).
Assim como o movimento Kefaya foi a fagulha, essa foi também uma revolução do Facebook – que hoje, nas ruas do Cairo, Alexandria e Suez já foi rebatizado e chama-se agora Sawrabook (“o livro da revolução”). Uma rede RASD (“de monitoramento”, em árabe) foi lançada no primeiro dia dos protestos, 4ª-feira passada, configurada como uma espécie de “observatório da revolução”.
É crucialmente importante observar que naquele momento – há menos de uma semana – a rede al-Jazeera ainda não chegara ao Egito e a televisão estatal egípcia exibia, como sempre, velhos filmes em branco e preto. Em apenas três dias, a RASD reuniu em rede cerca de 400 mil usuários, no Egito e no mundo. Quando o regime do Faraó acordou, já era tarde demais – e de nada lhe serviu derrubar a internet.
É esse espírito de solidariedade em ação que invadiu as ruas sob a forma de jovens ativistas operando telefones sem fio, fotografando e filmando ataques e feridos ou montando tendas para atendimento de campanha. Ou moradores da cidade do Cairo, oferecendo as próprias casa para abrigar manifestantes e organizando piquetes de vizinhos para proteger-se da ação de saqueadores e ladrões – muitos dos quais mostrados por blogueiros, quando carregavam equipamentos de identificação dos postos armas retiradas dos postos de polícia de Mubarak.
Por mais alarmadas que estejam as rarefeitas elites globais – basta seguir o labirinto de ambiguidades que liga Washington e as capitais europeias –, Brzezinski, pelo menos, parece suficientemente ligado para entender a deriva geral, quando “as principais potências mundiais, novas e velhas (…) enfrentam uma nova realidade: embora a letalidade do poder bélico seja hoje maior do que nunca, a capacidade de impor controle a massas que já despertaram para a vida política alcança hoje o ponto mais baixo de toda a história.”
A velha ordem está morrendo, mas a nova ainda não nasceu. A Idade da Fúria no arco que vai da África do Norte ao Oriente Médio parece ter começado – mais ainda não se sabe qual será a nova configuração geopolítica. O povo se fará ouvir – ou acabará encurralado e controlado pelas potências que aí estão?
O Egito não se converterá em democracia que funciona porque falta a infraestrutura política. Mas pode recomeçar do começo, com todas as oposições tão desprestigiadas quando o regime. A geração mais jovem – potencializada pela emoção de estar lutando do lado certo da história – terá papel crucial.
Não aceitarão a ilusão de ótica de alguma falsa mudança de regime, só para preservar alguma “estabilidade”. Não aceitarão ser sequestrados por EUA e Europa, apresentados como neofantoches. Querem o choque do novo; governo verdadeiramente soberano, nada de neoliberalismo e uma nova ordem política para o Oriente Médio.
A contrarrevolução será feroz. E atacará muito mais do que alguns bunkers no Cairo.
http://www.outraspalavras.net/2011/01/31/revolucao-dos-pobres-nao-do-isla/
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Os EUA flertam com o fundamentalismo egípcio
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Antonio Martins8 de fevereiro de 2011 Relação de Washington com Fraternidade Muçulmana é menos antagônica do que sugerem as aparências
Outras Palavras tem dado amplo destaque, nas últimas semanas, aos levantes populares que sacodem parte dos países árabes. São o grande fato novo do cenário internacional, por muitos motivos. Sacodem uma região paralisada há décadas — primeiro, por uma geopolítica mundial que dividia o planeta entre aliados dos Estados Unidos e da União Soviética; mais tarde, com a migração, a órbita norte-americana, de parte das ditaduras que girava em torno da URSS. Expressam que uma nova cultura política, marcada pela ação direta de cidadãos que se conectam em rede, expande-se também onde não se suspeitava. Uma marca essencial das revoluções tunisiana e egípcia, mas também dos protestos na Jordânia, no Yêmen e na Argélia é o fato de não se darem sob a liderança de partidos políticos, nem de movimentos sociais tradicionais.
Neste aspecto está seu frescor e, também, sua debilidade momentânea. As multidões tomam as ruas, enfrentam exércitos, derrubam governos (como na Tunísia) ou os fazem balançar — mas não têm como constituir (contra-)poder. As antigas formas de organização ainda imperam. No Egito, há o próprio governo Mubarak, o exército e… a Fraternidade Muçulmana. Há alguns dias, seus dirigentes provocaram surpresa, ao anunciar que já não reivindicam a deposição do presidente.
Mas o que é a Fraternidade? Dois textos ajudam a conhecê-la melhor. Redigido por Wendy Kristianasen e publicado em abril de 2010 na
Biblioteca Diplô, o ensaio “
Os Irmãos Muçulmanos divididos” (tradução de Jô Amado) é um ampla radiografia do movimento: origens, história, ramificações nos diversos países árabes, ideologia, formas de agir. Já “
Washington e a Fraternidade Muçulmana” acaba de ser publicado, na excelente New York Review of Books”. Está disponível em
Outras Palavras, com tradução do coletivo Vila Vudu. Pode ser surpreendente, para quem (como a velha mídia) acostumou-se a enxergar o Oriente Médio dividido basicamente entre os Estados Unidos e a tradição fundamentalista islâmica.
O texto relata com riqueza de dados, a colaboração de décadas que Washington manteve com a Fraternidade — que atua ao mesmo tempo como Previdência para-estatal, sistema de escolas religiosas (madrassas) e força política. Ela era vista como contraponto ao nacionalismo árabe dos anos 1950 ou, pouco mais tarde, à presença da União Soviética no Oriente Médio. Nesse aspecto, as relações que manteve (e mantém) com os EUA assemelham-se às da própria Al-Qaeda, cuja expansão foi estimulada pela Casa Branca, no esforço para expulsar a URSS do Afeganistão.
No intrincado cipoal político do Oriente Médio, quase tudo tem bem mais de um sentido. A Fraternidade é, ao mesmo tempo, peça importante na oposição aos regimes pró-EUA, na região. Esta contradição pode abrir brechas para rebeliões populares que parecem se opor tanto às ditaduras apoiadas pelo Ocidente quanto aos fundamentalismos religiosas.
http://ponto.outraspalavras.net/2011/02/08/os-eua-e-a-fraternidade-muculmana/
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Washington e a Fraternidade Muçulmana
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Caue Seigne Ameni 08/02/2011
Ditadores apoiados pelos EUA no Norte da África e no Oriente Médio estão sendo derrubados ou, no mínimo, estão sendo vigorosamente sacudidos por protestos populares, e Washington vê-se às voltas com questão crucial de política externa: como lidar com a poderosa, embora opaca, Fraternidade Muçulmana.
No Egito, a Fraternidade está tomando parte muito ativa e cada vez mais significativa nos protestos de rua, e na 5ª-feira distribuiu manifesto em que exige a imediata renúncia de Mubarak. E embora ainda não se veja claramente (aliás, longe disso) que papel teria a Fraternidade se Mubarak renunciar ou for derrubado do poder, o presidente egípcio não se cansa de dizer, em tom de ameaça, que “os Irmãos” tomarão o poder. Seja como for, o movimento será ator importante, em qualquer governo de transição.
Jornalistas e comentaristas de amenidades já se dedicam a avaliar as forças e os perigos desse movimento islâmico que já completou 83 anos de idade, cujos vários ramos nacionais são a oposição mais potente aos aliados dos EUA em virtualmente todos os países da Região. Há os que se preocupam com como a Fraternidade tratará Israel e os que não acreditam que tenha renunciado definitivamente à violência. Muitos – entre os quais o governo Obama – parecem pensar que seja um movimento com o qual o ocidente pode negociar, ainda que a Casa Branca negue qualquer contato formal com a Fraternidade Muçulmana.
Se os parágrafos acima despertam sensação de déjà vu, é porque, nos últimos 60 anos, assistimos ao mesmo filme várias vezes, com resultados quase idênticos. Desde os anos 1950s, os EUA vêm construindo alianças e parcerias com a Fraternidade ou com seus epígonos nos campos mais diversos, de combater o comunismo a acalmar tensões entre muçulmanos europeus. E se se examina a história, vê-se que há padrão bem claro: volta e meia, políticos dos EUA decidem que a Fraternidade Muçulmana pode ser instrumento útil e tentam curvá-la aos interesses dos EUA; e todas as vezes que o fazem – o que talvez nem seja surpresa –, a Fraternidade Muçulmana colhe mais benefícios que os EUA.
- Os líderes da Fraternidade Muçulmana Essam Senior (centro direita), El-Erian e Saad el-Katatni (centro esquerda) participam de um protesto no Cairo, em 30 de janeiro de 2011
Como se explica que os EUA saibam tão pouco da própria história? Uma mistura de otimismo simplório, autoconfiança além do racional e uma obsessão nacional pelo sigilo, e eis por que é tão difícil para os norte-americanos conhecerem a longa história dos contatos entre governos dos EUA e a Fraternidade Muçulmana.
O Presidente Eisenhower, por exemplo. Em 1953, um ano antes de Nasser declarar a Fraternidade ilegal, um programa clandestino de propaganda pró-EUA, chefiado pela Agência de Informações dos EUA [orig. US Information Agency] trouxe aos EUA quase 40 intelectuais islâmicos e líderes políticos civis para o que foi divulgado oficialmente como um simpósio acadêmico na Princeton University. O verdadeiro motivo para o “simpósio” era “impregnar” os visitantes com a força espiritual e moral dos EUA – porque se acreditava que teriam meios para influenciar a opinião pública nos países muçulmanos, com mais eficácia do que as ditaduras ossificadas que lá já estavam instaladas ou estavam em processo de implantação. O objetivo final era promover uma agenda anticomunista naqueles países que começavam a tornar-se independentes, em muitos dos quais havia maioria muçulmana.
Um daqueles convidados, segundo o livro de apontamentos de Eisenhower, foi “O Honorável Saeed Ramahdan, Delegado da Fraternidade Muçulmana” [1] (cujo nome também aparece grafado, romanizado, como Said Ramadan) – genro do fundador da Fraternidade e descrito então, em todo o mundo, como “ministro de Relações Exteriores” do grupo (e é pai do controvertido especialista suíço, teórico do Islamismo, Tariq Ramadan).
Os funcionários de Eisenhower sabiam o que faziam. Na batalha contra o comunismo, entenderam que a religião seria tema e força de que os EUA poderiam servir-se – porque a URSS era ateísta e os EUA eram campeões da liberdade de culto. Nas análises da CIA, Said Ramadan aparecia descrito como “falangista”, “fascista interessado em arregimentar pessoas para o poder”. Mas a Casa Branca convidou-o, apesar do falangismo e do fascismo diagnosticados pela CIA.
- O presidente Dwight D. Eisenhower no Salão Oval com um grupo de delegados muçulmanos de 1953. Said Ramadan é o segundo da direita.
O presidente Dwight D. Eisenhower no Salão Oval com um grupo de delegados muçulmanos de 1953. Said Ramadan é o segundo da direita.
Ao final daquela década, a CIA já apoiava Ramadan abertamente. Embora seja excesso de simplificação descrevê-lo como agente dos EUA nos anos 1950s e 1960s, os EUA o apoiaram na ação de invadir e ocupar uma mesquita em Munique, expulsando de lá os muçulmanos locais, para construir o que viria a ser um dos centros mais importantes da Fraternidade Muçulmana – e paraíso seguro para membros perseguidos do grupo durante as décadas de mais aguda perseguição. No final, os EUA pouco colheram dos seus esforços, porque Ramadan trabalhava mais para divulgar sua agenda islamita, do que para combater o comunismo. Anos depois, apoiou a Revolução democrática iraniana e ajudou a dar fuga a um ativista pró-Teerã que assassinara um dos diplomatas do Xá em Washington.
A cooperação teve fases de maré montante e fases de maré vazante. Durante a Guerra do Vietnã, a atenção dos EUA esteve concentrada noutra parte do mundo, mas com o início da guerra dos soviéticos no Afeganistão, ressurgiu o interesse em cultivar relações com islamitas. O período durante o qual os EUA apoiaram os mujahedeen — alguns dos quais se converteram em al-Qaeda— é bem conhecido, mas Washington continuou a flertar com islamitas, e especialmente, sempre, com a Fraternidade Muçulmana.
Imediatamente depois dos ataques de 11/9, os EUA caçaram, inicialmente, a Fraternidade Muçulmana, declarando que vários “Irmãos” seriam apoiadores de terroristas. Mas à altura do segundo mandato de Bush, os EUA já perdia duas guerras no mundo muçulmano e encarava minorias muçulmanas hostis na Alemanha, França e outros países europeus nos quais a Fraternidade estabelecera presença influente. Sem alarde, os EUA mudaram de alvo.
O governo Bush construiu estratégia para criar relações íntimas com grupos muçulmanos na Europa, que eram ideologicamente próximos da Fraternidade, supondo que a Fraternidade poderia ser útil, como interlocutor, nos contatos com grupos mais radicais como os extremistas organizados em Paris, Londres e Hamburgo. E, como nos anos 1950s, os funcionários do governo dos EUA planejaram divulgar para o mundo islâmico uma imagem de Washington como próxima de islamitas organizados no ocidente. Para isso, a partir de 2005, o Departamento de Estado disparou esforços para atrair a Fraternidade Muçulmana. Em 2006, por exemplo, organizou uma conferência em Bruxelas entre esses membros europeus da Fraternidade Muçulmana e muçulmanos norte-americanos, como a Islamic Society of North America, grupo tido como próximo da Fraternidade egípcia. Tudo isso a partir de análises da CIA, uma das quais, datada de 2006, informa que a Fraternidade manifestava “impressionante dinamismo interno, organização e talento para operar com a mídia”.
Apesar de aliados ocidentais manifestarem preocupações com os riscos de tanto apoio à Fraternidade na Europa, a CIA sempre recomendou a cooperação. Como no governo Obama, foi obra de alguns funcionários do governo Bush, que se encarregaram de construir essa estratégia.
Por que tanto interesse, por tanto tempo, na Fraternidade Muçulmana?
Desde a fundação, em 1928, pelo professor primário e imã Hassan al-Banna, a Fraternidade tem conseguido dar voz às aspirações de uma classe média quase sempre confusa e desprestigiada no mundo muçulmano. Isso explica o conservadorismo da Fraternidade, uma mistura interessante de fundamentalismo e fascismo (ou de políticas reacionárias e xenofobia): os muçulmanos de hoje jamais são considerados suficientemente muçulmanos, e devem voltar ao espírito do Corão. Os estrangeiros, especialmente os israelenses, são parte de uma vasta conspiração para oprimir os muçulmanos. Essa mensagem era – e ainda é – veiculada por estrutura eficaz, como de partido político, que inclui grupos de mulheres, clubes para jovens, publicações e veículos de mídia eletrônica e, em algumas fases, alas paramilitares.
A Fraternidade deu origem a vários dos grupos considerados mais violentos do radicalismo islâmico, do Hamás à al-Qaeda, embora para alguns desses grupos a Fraternidade já pareça tradicionalista demais. Não surpreende que a Fraternidade Muçulmana, apesar de seus aspectos confusos ou mal conhecidos, seja sempre tema que interessa a estrategistas ocidentais em busca de conquistar influência naquela parte estratégica do mundo.
Mas a Fraternidade Muçulmana sempre foi parceiro cheio de segredos e truques. Nos países nos quais os Irmãos aspiram a algum espaço na política governante, renunciam localmente ao uso da violência. Por isso a Fraternidade Muçulmana no Egito diz que não recorrerá a vias violentas para derrubar o governo Mubarak — embora vários Irmãos não se impeçam de pregar a destruição de Israel.
No Egito, a Fraternidade também diz que é a favor da criação de cortes religiosas para implantar a Shariah, tanto quanto, outras vezes, acrescenta que haveria tribunais seculares, aos quais teriam a última palavra. Não se trata de sugerir que a moderação é para efeito de propaganda, mas ajuda a lembrar que a Fraternidade só abraçou parcialmente os valores da democracia e do pluralismo.
O clérigo mais poderoso da Fraternidade Muçulmana, Youssef Qaradawi, que vive no Qatar, é exemplo dessa visão de mundo bifurcada. Diz que as mulheres devem poder trabalhar e que, em alguns países, os muçulmanos podem contratar hipotecas (transação que se baseia em juros, tabu para os fundamentalistas). Mas Qaradawi advoga o apedrejamento de homossexuais e o assassinato de crianças israelenses – que serão obrigatoriamente soldados ao alcançar a maioridade.
Qaradawi não é de modo algum marginal, na Fraternidade. No passado, foi várias vezes mencionado como candidato a líder principal do ramo egípcio. É provavelmente o nome da Fraternidade mais influente no mundo muçulmano – na 6ª-feira, por exemplo, milhares de manifestantes egípcios assistiram na praça Tahrir a um de seus sermões. Foi quem declarou mártires os manifestantes que morreram por desafiarem o governo Mubarak.
É indicação de que a influência da Fraternidade está crescendo na onda de manifestações por toda a Região. No Egito, a Fraternidade começou devagar, mas tornou-se ator chave na coalizão de oposição ao governo; na 5ª-feira, o novo vice-presidente Omar Suleiman convidou a Fraternidade para conversações. Na Jordânia, onde o grupo é legal, o rei Abdullah reuniu-se com “os Irmãos” pela primeira vez em dez anos. E em Túnis, o líder da oposição islamita Rachid Ghanouchi, um dos pilares da rede da Fraternidade em toda a Europa, voltou recentemente do exílio em Londres, para a Tunísia.
Tudo isso aponta para a principal diferença entre antes e agora. Há meio século, o ocidente optou por servir-se da Fraternidade com vistas a algum ganho tático de curto prazo, e mais tarde apoiou muitos dos governos autoritários que tentavam varrer o grupo para sempre. Agora, com esses governos por um fio, o ocidente ficou praticamente sem escolha; depois de décadas de opressão, é a Fraternidade Muçulmana, com sua estranha combinação de fundamentalismo antiquado e métodos modernos de fazer política social que aí está, sobrevivente, no centro da disputa.
NOTA[1] O livro de apontamentos, com detalhes da visita de Ramadan, está nos arquivos presidenciais de Eisenhower em Abilene, Kansas. Sobre isso, ver meu livro
A Mosque in Munich, pp. 116-119. Sobre a Fraternidade pós 9/11, ver pp. 222-228.
http://www.outraspalavras.net/2011/02/08/50-anos-de-historia-secretawashington-e-a-fraternidade-muculmana/
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