Por Moara Crivelente*
Cruzar a fronteira do rei, da Jordânia para a Palestina, foi
como retomar uma longa jornada. A ocupação israelense dos territórios e das
vidas dos palestinos é multidimensional, onipresente e traz custos
elevadíssimos à dignidade e à humanidade, e precisa ser investigada
constantemente. A resistência nacional, entretanto, não se deixa dobrar.
Um grupo de brasileiros representantes de diversos
movimentos sociais – inclusive do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos
e Luta pela Paz (Cebrapaz) – viajou à Palestina com o intuito de entrar na
Faixa de Gaza. Na véspera, enquanto participávamos do Fórum Social Mundial na
Tunísia, recebemos a notícia de que o governo israelense, que controla duas
passagens para o estreito território sitiado há oito anos, não permitiria a
entrada demandada através da Chancelaria brasileira, alegando “motivos de
segurança” e a proximidade do feriado religioso Judaico, o Pessach, no início
de abril.
Colônia israelense de Beit El |
Não bastasse, à entrada da Cisjordânia, dois membros do
grupo, Soraya Misleh e Mohamad El-Kadri, da Frente em Defesa do Povo Palestino,
foram barrados e banidos do retorno por cinco anos. O Itamaraty pronunciou-se a respeito ; o racismo e a segregação aos quais são submetidos os palestinos já
ficaram demonstrados na fronteira Jordânia-Cisjordânia, com a inescrupulosa
exclusão de dois descendentes de árabes.
A Faixa de Gaza não ficou esquecida enquanto visitávamos uma
vila em dia de protesto contra a ocupação, as famílias de prisioneiros ou recém-libertos – como o caso de Ra’ed Zibar, membro da resistência da Frente
Popular pela Libertação da Palestina (FPLP) detido durante a segunda intifada,
em 2002, e libertado 13 anos depois – e representantes de entidades sociais, ou
da Organização pela Libertação da Palestina (OLP). Embora tivéssemos a nova
tarefa de coletar novas informações e expressar apoio firme à luta palestina
pela paz e pela libertação, na Cisjordânia, impedidos de entrar em Gaza, a
necessidade de abordar a ocupação por completo ficou evidenciada a todo o
momento. A estratégia de fragmentação dos territórios, ou melhor, do Estado
ocupado da Palestina, serve à tentativa sionista de dar por encerrada a
discussão, como se houvesse uma discussão, e não centenas de resoluções da ONU
e outras instituições que não só condenam as práticas da ocupação como
reconhecem o direito dos palestinos de resistir.
Posto de controle militar israelense em Calândia |
Esses são, claro, temas essenciais no acompanhar da causa
palestina, mas às vezes ficam perdidos nas análises mais profundas, também
necessárias, sobre os matizes que agudizam as relações entre israelenses e
palestinos e a própria ocupação sionista da Palestina. A aliança da maior
potência bélica mundial – os EUA, que se apresentam como mediadores sem qualquer
legitimidade – está abalada, mas não comprometida. Evidências disso são
abundantes. Ainda, a radicalização da sociedade israelense assusta alguns
observadores. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu partido de
extrema-direita reeleito, Likud, agravaram a retórica para rechaçar agora
abertamente o Estado da Palestina. Entretanto, a ponderação sobre a expressiva
votação da Lista Conjunta de partidos árabes e um misto nas eleições de março
em Israel e o maior número de votos para partidos ditos de “esquerda” é de
elevada importância.
Netanyahu disse o que achou necessário para recobrar o postonas eleições. Por outro lado, isso lhe custou maior apoio internacional à causa
palestina, agora levada aos tribunais internacionais para desvelar décadas de
crimes de guerra na base de sustentação da ocupação. Em 1º de abril se efetivou
a adesão do Estado da Palestina ao Estatuto de Roma, constitutivo do Tribunal
Penal Internacional (TPI), iniciativa que custou a suspensão do repassasse de
mais de US$ 130 milhões por mês, desde dezembro, em impostos recolhidos pela
administração israelense, como sanção. Os salários de milhares de palestinos
ficaram comprometidos.
Brasileiros encontram Mustafa Barghouthi em Ramallah |
Mesmo assim, inúmeros casos foram dirigidos ao TPI como
amostras dos crimes perpetrados não só pelo Exército como por todo o aparato
administrativo israelense nos territórios palestinos ocupados. Naquele dia, a
reunião em Ramallah com Mustafa Barghouthi, diretor da Iniciativa Nacional
Palestina, expunha mais uma vez, em imagens e números, a devastação na Faixa de
Gaza, na terceira grande ofensiva israelense em cinco anos – que matou mais de
2.270 palestinos, sendo 83% civis e 580 crianças, com 91 famílias dizimadas,
além de jornalistas e pessoal médico; são flagrantes crimes de guerra, apesar
do contorcionismo israelense para justificá-los. Uma comissão de inquérito do
Conselho de Direitos Humanos da ONU investiga as denúncias com grande dificuldade.
Tropas de ocupação israelense em Jerusalém |
Barghouthi também explicou os vários instrumentos da
segregação nos territórios palestinos, com referência ao uso desigual da
energia elétrica e dos recursos aquíferos – em grande parte retirado dos
próprios reservatórios palestinos, a quem a água é vendida por valor superior
ao da taxa cobrada às colônias israelenses. Além disso, a malha rodoviária
exclusiva para israelenses corta a Cisjordânia obrigando os palestinos a mais
uma vez desviarem dos seus caminhos, além de já terem de mover vilas e
plantações de lugar para a passagem do muro construído desde 2002 – a “barreira
de segurança”, no linguajar israelense – com oito a 12 metros de altura e 800
quilômetros de extensão. As permissões para movimentação ou a construção, a
emissão de documentos de identidade e até mesmo a configuração das famílias
passam pelo crivo das autoridades israelenses. Bases e “áreas militares
fechadas” roubam ainda mais terras, além daquelas dedicadas às cerca de 140
colônias – algumas consideradas ilegais pelo próprio governo israelense, mas
que recebem luz e água – onde residem quase 600 mil israelenses.
Tentar criar uma realidade irreversível é o principalintuito da ocupação, cujas leis usam termos religiosos – como “Eretz Israel”, a
Grande Israel de onde a Palestina seria eliminada – para expandir o controle a
frações importantes, como a cidade de Jerusalém, anexada em 1967 e em 1980 –
embora a Lei de Jerusalém não use abertamente o termo “anexação”. Numa
conversa, um policial israelense que tentava ser simpático – uma raridade – à
entrada da esplanada das mesquitas, onde fica Al-Aqsa, alegava que “Israel quer
a paz e, por isso, permite que a Jordânia controle a esplanada e respeita o
local, só adentrando quando necessário”. O policial, que parecia acreditar no
título de Jerusalém, “capital una e eterna de Israel”, referia-se 1) a um
reduzido local de Jerusalém Oriental, palestina, mas ocupada, onde os policiais
e soldados israelenses não deveriam entrar, segundo acordo com a Jordânia e 2)
às vezes em que a presença de israelenses leva a confrontos e à invasão dos soldados
para conter, principalmente, os palestinos, que acabam sendo banidos do local
por alguns dias.
Base militar da ocupação israelense na Cisjordânia |
A fragmentação é um dos principais instrumentos, físicos e
imaginários, para “quebrar a resistência” e a unidade nacional entre os
palestinos. Não tem funcionado, porém. Alternativas nascem em grande dinâmica
dos partidos políticos e dos movimentos sociais. É o caso dos comitês populares
e de organizações como a União da Juventude Palestina, que realiza projetos nas
áreas rurais mais impactadas pela ocupação para apoiar a geração de renda, a
produção de comida – em alternativa ao consumo de produtos israelenses – e a
permanência das pessoas, em resistência contra a expulsão.
As autoridades palestinas também intensificam esforços
internos, como a recente resolução do Comitê Central da OLP, que adere ao
boicote aos produtos israelenses e insta ao fim da chamada “cooperação
securitária” com Israel, prevista nos Acordos de Oslo da década de 1990 e que
aos palestinos tem se evidenciado como uma aceitação da ocupação, imposta por Israel e por seus parceiros “mediadores” . A resistência fortalece-se nas
iniciativas nacionais e no aumento da solidariedade internacional. Se as portas
da diplomacia com Israel são fechadas pela própria liderança israelense – a
contragosto de uma grande porção da sociedade, que fique claro – o mundo deve
oferecer alternativas e intensificar esforços pelo fim da impunidade e da
ocupação israelenses na Palestina.
*Moara Crivelente é Cientista política, jornalista e membro do Centro
Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), assessorando
a presidência do Conselho Mundial da Paz.
Fonte: Portal Vermelho
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