sábado, 9 de abril de 2011

Relatório sobre Gaza, acusação e retratação


O juiz Goldstone e a inusitada decisão de recuar da conclusão de que Israel usou força desproporcional contra palestinos

09 de abril de 2011 

Roger Cohen, The International Herald Tribune - O Estado de S.Paulo

Temos um novo verbo, "goldstonar". Seu significado: fazer uma revelação e depois, parcialmente, se retratar dela por algum motivo indefinido. Etimologia: as estranhas ações de um respeitado jurista judeu sul-africano sob intensa pressão de Israel, do Congresso americano e de organizações judaicas internacionais.


Richard Goldstone é o autor do "Goldstone Report" (literalmente, o relatório Goldstone), uma investigação da campanha militar de Israel na Faixa de Gaza entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009. Ele revelou que Israel havia se envolvido num "ataque deliberadamente desproporcional para punir, humilhar e aterrorizar uma população civil", cuja responsabilidade recai "em primeiro lugar nos que desenharam, planejaram, ordenaram e supervisionaram as operações".

Ele disse que tanto Israel quanto o Hamas podem ter cometido crimes contra a humanidade num conflito que deixou 1.314 palestinos mortos (incluindo muitas crianças) e 13 israelenses.

Agora, a retratação de Goldstone aparece na forma de um artigo de opinião no jornal Washington Post. O esforço é bizarro. Ele diz que seu relatório teria sido diferente "se eu tivesse sabido então o que sei agora". A diferença central que o juiz identifica é que ele agora está convencido de que "os civis (de Gaza) não foram visados intencionalmente por uma questão de política".

Sua mudança de posição é atribuída às revelações de um relatório subsequente de uma comissão de especialistas independentes da ONU chefiada por Mary McGowan Davis, uma ex-juíza de Nova York. Bem, Goldstone e eu provavelmente não lemos o mesmo relatório.

McGowan Davis é, de fato, extremamente crítica àquelas investigações israelenses - seu atraso, leniência, falta de transparência e estrutura deficiente. Seu relatório - obstruído pela falta de acesso a Israel, Gaza ou Cisjordânia - não contém nenhuma informação que, a meu ver, pudesse sustentar uma mudança de opinião.

Na questão central da intencionalidade, ele declara: "Não há indício de que Israel abriu investigações das ações dos que desenharam, planejaram, ordenaram e supervisionaram a Operação Chumbo Fundido." Ele diz que Israel não respondeu adequadamente às alegações do Relatório Goldstone sobre o "desenho e aplicação das operações em Gaza" ou seus "objetivos e alvos". As vítimas de ambos os lados, argumenta McGowan, não podem esperar "uma responsabilização genuína e justiça".

Há um mistério aqui, em suma. Goldstone mudou, mas as evidências não.

Isso coloca a questão de se o jurista cedeu a pressões tão insistentes que quase o excluíram do bar mitzvah de seu neto na África do Sul. Será mais uma questão de coragem judicial do que de coerência? O fato de o Hamas não ter realizado nenhuma investigaçãosobre seus ataques inescrupulosos ao sul de Israel - foguetes e morteiros continuam caindo - é lamentável, mas não surpreendente.

Goldstone aproveita isso ao máximo. Mas isso não muda a natureza do que Israel fez em Gaza, nem alivia as preocupações de McGowan Davis sobre as falhas investigativas de Israel.

Goldstone, um judeu que leva o judaísmo a sério, foi exposto ao ridículo por Israel. Ele ficou confuso, como nenhum outro talvez, com a mentalidade de cerco de um país que controla as vidas de milhões de palestinos, mas é inseguro sobre o que fazer com eles ou com a crescente desaprovação mundial a seu domínio corrosivo que humilha suas vítimas e corrói a alma de seus amos.

As acusações se multiplicaram: ele era um "judeu que odeia a si mesmo", um hipócrita, um traidor. Para Alan Dershowitz, ele era "desprezível". Para o premiê israelense, Binyamin Netanyahu, Goldstone era como o programa nuclear iraniano e os foguetes do Hamas, um dos "três maiores desafios estratégicos" de Israel.

Também já se multiplicam as teorias sobre a condição mental de Goldstone. Foi uma reunião emotiva no ano passado com o Conselho Sul-africano dos Deputados Judeus que o colocou no caminho da retratação. Não, foi um debate acalorado no mês passado na Universidade Stanford. Não, foi um ministro direitista israelense lhe contando que seu relatório incitou aqueles que esfaquearam colonos na Cisjordânia.

Ele ficou "arrasado", sugere um amigo.

Não sei. Perguntei a Goldstone. Ele respondeu num e-mail que estava recusando "entrevistas para a mídia". Eu sei o seguinte: as contorções dessa retratação são consideráveis.

Goldstone expressa confiança de que a autoridade israelense responsável pela chacina de 29 membros da família Al-Samouni será devidamente punida. Mas o relatório de McGowan Davis critica essa investigação e nota que "não foi tomada nenhuma decisão sobre se a autoridade será julgada ou não."

Este relatório nota também que mais de um terço dos 36 incidentes em Gaza identificados no Relatório Goldstone "continua sem solução ou pouco claro". Houve apenas duas condenações - e uma por roubo de cartão de crédito teve uma pena mais pesada do que o uso de uma criança palestina como escudo humano! E isso dá confiança a Goldstone? Israel está comemorando o que chama de uma vingança. Ele está se preparando para receber Goldstone. Está pedindo a anulação do relatório, apesar de Goldstone ser apenas um de seus quatro autores.

Enquanto isso, os fatos permanecem: os mais de 1.300 palestinos mortos, os 13 israelenses mortos, a devastação, os foguetes do Hamas - e a necessidade de uma investigação crível do que todas as evidência sugerem que foram ataques israelenses em larga escala, indiscriminados, ilegais em Gaza, e crimes do Hamas contra civis.

"Goldstonar": (coloquial) Instaurar confusão, ocultar um segredo, causar estragos.

 TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

É COLUNISTA

Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110409/not_imp703920,0.php

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