sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A questão palestina: Cem anos da Primeira Guerra Mundial e da Declaração de Balfour

O professor Walid Khalidi nasceu em Jerusalém, Palestina, em 1925.
Walid Khalidi وليد الخالدي



Centre for Palestine Studies, SOAS, University of London

Primeira Conferência Anual, 6/3/2014

Dia 6 de março de 2014 o conhecido historiador palestino, professor Walid Khalidi, fundador e diretor do Institute for Palestine Studies (ABeirute e Washington), ministrou conferência sobre "Palestina e Estudos Palestinos: Cem anos desde a 1a. Guerra Mundial e a Declaração de Balfour", na SOAS (Escola de Estudos Orientais e Africanos), Universidade de Londres, na presença de dois embaixadores árabes e vários jornalistas.

O evento foi organizado pelo Centro para Estudos Palestinos/LMEI da SOAS, com apresentação feita pelo professor Gilbert Achcar, presidente do Centro.

O professor Walid Khalidi nasceu em Jerusalém, Palestina, em 1925. Estudou em Oxford e lecionou nessa universidade, na American University de Beirute, em Harvard e em Princeton. Co-fundador e secretário-geral desde 1963 do Instituto de Estudos Palestinos, com sede em Beirute, é atualmente diretor do afiliado Instituto de Estudos Palestinos (EUA), com sede em Washington DC, e membro da Academia Norte-Americana de Artes e Ciências.

Na apresentação, o professor Gilbert Achcar disse: "O professor Khalidi surpreendeu os presentes, com suas, ao mesmo tempo, conferência fascinante e excelente performance."




Belém, Palestina - 1934
Belém, Palestina - 1934

1.

Há cem anos, que se completam em 2014, abriram-se as comportas da 1ª Guerra Mundial e desencadeou-se a sequência de eventos que levou à Declaração de Balfour. Quando foi assinada, em 1917, já se passavam quase 40 anos desde o início da colonização sionista, e 20 desde o 1º Congresso Sionista em Basel. Apesar do fervor dos primeiros colonos, o movimento das massas de judeus que fugiam do governo czarista não tomou o rumo sul, partindo do Levante, mas leste, atravessando a Europa na direção das costas, que os atraíam como ímãs, da América do Norte. Pouquíssimos chegaram à Palestina; uma vasta maré humana cruzou o Atlântico.[1]

Muitas autoridades rabínicas dentro da Diáspora eram hostis ao sionismo, pela apropriação do Messias judeu; e a burguesia judaica norte-americana e europeia sentia-se embaraçada ante a ideia sionista, e temerosa ante acusações de dupla lealdade.

Tudo isso mudou, quando a Grã-Bretanha deu suas bênçãos à aventura sionista, na Declaração de Balfour. E não deu só bênçãos: também concordou em transformar essa declaração unilateral em obrigação autoimposta garantida pela lei internacional, no sistema do Mandato da Liga das Nações recém estabelecida.

Declaração de Balfour, texto original em ingles


Declaração de Balfour, texto em portugues

Só nessa governança como poder imperial a Grã-Bretanha concordou com levar avante essa parceria com um corpo privado estrangeiro (a Organização Sionista Mundial), então elevado, sob o disfarce de Agência Judaica internacional, ao status de ator independente reconhecido pela Liga das Nações para o objetivo específico de criar o Lar Nacional Judeu na Palestina.

Uma questão surge imediatamente à mente. Como é possível que Londres, com toda sua vasta experiência pró-consular amadurecida durante séculos de contatos e negociações com incontáveis raças e fés em todo o mundo, tenha-se deixado prender e tombado a favor do plano sionista?

A resposta curta tem duas sílabas: húbris. Ao final da 1ª Guerra Mundial, com os EUA fechados num paredão de isolacionismo e com os impérios otomano, Romanov, Habsburg e Hohenzollern em ruínas, o poder britânico não tinha adversários. Só o reino do rei Clóvis, do outro lado do canal, podia ameaçar a Grã-Bretanha. Mas não era grande coisa, porque Sir Mark Sykes já tinha à mão a fórmula para conquistar a aquiescência dos franceses: dividir o butim!

Há é claro resposta mais longa, e é aí que entram nossos centros de pesquisa. Deixando de lado as árvores e as muitas folhas dos “White Papers”, “Blue Books” e “Comissões de Inquérito” do período do Mandato, nossos especialistas se dedicariam a olhar mais profundamente e a examinar o modo como e as razões por que a Londres imperial, entre as duas guerras mundiais, cevou um imperium in imperio rival sob sua governança. A charada só aumenta, quando se considera que esse imperium não seria só local. Ele tinha uma dimensão externa, um imperium ex imperio, na Agência Judaica, cujas principais instituições centrais e outras fontes de poder eram em larga medida norte-americanas, o que o punha além do alcance do controle por Londres.

Assim, quando, em 1939, Ben Gurion, o destacado líder do Yishuv, decidiu trocar de montaria, abandonando o cavalo britânico (preferido de seu rival político Chaim Weizmann), por cavalo norte-americano, ele o fez num cálculo deliberado: o potencial dos EUA como contrapeso e sucessor da Grã-Bretanha.

A estória é velha como a velha história: a revolta do cliente contra o patrão metropolitano. Mas a erosão do acordo anglo-sionista ao final dos anos 1930s, também ilustra uma lei de ferro da política. Não há duas entidades políticas que permaneçam em sincronia eterna. Há ‘moral da história’ aqui, que se aplica à atual relação entre a Washington de Obama e a Telavive de Bibi.

2.

Os eventos de 1948 geraram mais controvérsia que qualquer outra fase do Problema Palestino, eventualmente dando origem a uma nova escola de historiografia pós-sionista em Israel. Esses autores têm sido designados os “Novos Historiadores”, para diferençá-los dos “Velhos Historiadores” que articularam uma narrativa fundacional sionista mítica.

A velha narrativa mostrava um Davi Yishuv ante um Golias Árabe, com a Pérfida Albion decidida a estrangular o estado recém-nascido. Também envolveu centenas de milhares de palestinos terem deixado suas casas, plantações e negócios, obedecendo ordens dos seus próprios líderes, para dar lugar aos exércitos árabes invasores, dia 15/5/1948.

Dado o papel que nosso Instituto de Estudos Palestinos e também o meu papel, na articulação da contranarrativa palestina em oposição àqueles Velhos Historiadores, talvez seja útil, para efeitos de documentação histórica, partilhar com vocês alguns elementos de como o processo desenvolveu-se.

Um dos primeiros relatos de autoridade, que contestou versão oficial do mito da ordem israelense foi apresentado pelo historiador palestino Arif al-Arif. Arif vivia em Ramallah como comissário distrital assistente durante os últimos anos do Mandato, e os jordanianos o mantiveram como um governador civil de facto.

Em meados de julho de 1948, as forças israelenses lançaram ataque massivo contra as cidades palestinas de Lydda e Ramla, com os exércitos árabes, ali bem próximos, que não moveram uma palha. Toda a população das duas cidades, cerca de 60 mil pessoas, foram forçadas a uma longa viagem até Ramallah. Chegaram em condições lastimáveis; várias centenas morreram no caminho.

O conde Bernadotte, mediador da ONU, chegou a Ramallah na terceira semana de julho de 1948. Arif, destacado para acompanhá-lo, ficou boquiaberto quando Bernadotte lhe contou que altos oficiais israelenses que acabava de encontrar lhe haviam “assegurado” que os moradores de Lydda e Ramla haviam saído de suas casas obedecendo ordens que teriam sido dadas por líderes da próprias comunidades.

Imediatamente Arif providenciou para que Bernadotte se encontrasse com aqueles líderes palestinos, que ainda viviam em cavernas e sob pontes, depois da expulsão: clérigos muçulmanos e cristãos, conselheiros municipais, juízes, profissionais de todos os tipos.

Não tenho, eu, pessoalmente, dúvida alguma de que esse encontro contribuiu para que Bernadotte recomendasse à ONU que ordenasse o imediato retorno dos refugiados, resolução que a Assembleia Geral aprovou, depois de Bernadotte ter sido assassinado pela Stern Gang[2] de Yitzhak Shamir.[3]

Nos anos 1950s, a imprensa-empresa britânica já estava sob estrito controle da narrativa do mito. Naquele momento, predominava a versão israelense, de que as ordens para abandonar as casas haviam partido da liderança palestina, não de líderes locais. O expoente mais agressivo dessa versão era o jornalista britânico Jon Kimche, então editor do semanário Jewish Observer, órgão da Federação Sionista Britânica.

O principal líder palestino, Haj Amin al-Husseini, vivia então exilado no Líbano. Conhecia-o desde menino e ele sempre foi extremamente gentil comigo. Quando lhe falei do impacto da mentira sobre as tais ordens, no Ocidente, Haj Amin imediatamente me franqueou acesso irrestrito aos seus arquivos (que foram destruídos pelas forças da Falange, durante a guerra civil libanesa, nos anos 1970s).

Antes, eu já tivera acesso às gravações de monitoramento, pela BBC, de rádios árabes, de 1948, conservadas no Museu Britânico em Londres.

Somei os dados que obtivera de Haj Amin e o que encontrara nas gravações da BBC, e escrevi o artigo “Why Did the Palestinians Leave?” [Por que os palestinos partiram?”], publicado em 1959 no periódico East Forum dos alunos da American University em Beirute.

Entra Erskine B. Childers. Pouco depois de publicado esse artigo, recebi em Beirute a visita desse jovem jornalista irlandês, que se mostrou muito interessado nas gravações da BBC e disse que as examinaria ele mesmo, quando voltasse a Londres.

No início dos anos 1960s, entra Ian Gilmour, proprietário de Spectator, prestigiosa revista semanal britânica. Acabava de visitar Israel, onde ouvira a mentira das tais ordens, de altos funcionários israelenses. Conhecia também o artigo do Middle East Forum; fez muitas perguntas e partiu.

Dia 12/5/1961, a revista Spectator publicou artigo de Childers, intitulado “O outro êxodo” e que concluía: jamais houve ordem alguma.

Seguiu-se então uma torrente de cartas de leitores que durou quase três meses nas colunas de Spectator e graças à qual, graças a Gilmour, a contranarrativa, de oposição à versão israelense, ganhou exposição que jamais antes tivera.

Um dos primeiros a responder foi Jon Kimche, que opinou: “Novas mentiras (…) para substituir as velhas. Os israelenses contribuíram, mas mais recentemente apareceram mentiras dos propagandistas árabes (Walid Khalidi e Erskine Childers).”

Naquele momento eu estava em afastamento sabático da Universidade Americana em Beirute, e estava em Princeton, examinando as gravações de monitoramento feito pela CIA, de transmissões de rádios árabes, em 1948, na Firestone Library. De lá, escrevi à revista Spectator dizendo que não conhecia Childers (o que não era verdade), mas manifestando enorme prazer ao constatar que, por pesquisa independente, ele chegara às mesmas conclusões que eu (o que era verdade). Escrevi também que minhas novas pesquisas e o que encontrara em gravações feitas pela CIA confirmavam o que as gravações da BBC já haviam revelado.

Enquanto permaneci em Princeton, examinei também fontes em hebraico, com a ajuda de uma simpática professora idosa, sefardita.

O resultado dessa pesquisa foi “Plan Dalet: The Zionist Master Plan for the Conquest of Palestina” [Plano Dalet: o grande plano sionista para a conquista da Palestina], que seria publicado em 1961, também no Middle East Forum. Como a correspondência de leitores da Spectator cada vez mais envolvia o êxodo palestino em termos mais gerais, contribuí com um resumo das minhas descobertas. Na carta, escrevi, inter alia:

“Um amplo plano sionista, chamado “Plano Dalet”, para ocupação à força de áreas árabes dentro e fora de terras do Estado Judeu ‘dadas’ pela ONU aos sionistas foi posto em operação. O plano visava à desarabização de todas as áreas sob controle dos sionistas.

O Plano Dalet visava a quebrar a espinha da resistência palestina árabe e a desafiar a ONU, os EUA e os países árabes, impondo-lhes um fato consumado, militar e político, no menor tempo possível – daí os ataques massivos e impiedosos contra centros de população árabe.

Com o Plano Dalet em andamento, e dezenas de milhares de civis árabes em pânico nos países árabes vizinhos, a opinião pública árabe forçou seus vacilantes governos a enviar seus exércitos regulares para a Palestina.

Na refletida e pesquisada opinião desse autor, só a entrada de exércitos árabes na região frustrou os objetivos mais ambiciosos do Plano Dalet, que consistiam em nada menos que obter o controle militar de toda a Palestina a oeste do rio Jordão.”

Tanto quanto sei, foi a primeira vez que se mencionou o Plano Dalet, no Ocidente.

3.

Assim como a 1ª Guerra Mundial fez nascer a Declaração de Balfour, a guerra de 1967 fez nascer outro documento provocativo: a Resolução 232 do Conselho de Segurança.

E assim como a Declaração de Balfour é, num sentido, a nascente de todos os desenvolvimentos do Problema Palestino/conflito árabes/israelenses no resto do século 20 e incluindo a guerra de 1967, assim também a Res. 242-CS é, em certo sentido, a vertente básica de todos os desenvolvimentos no conflito, do final do século 20 até hoje.

Estranhamente, muitos observadores têm opinião positiva sobre a Res. 242, em grande parte porque o preâmbulo fala sobre a “inadmissibilidade da aquisição de território mediante guerra”. Mas nos parágrafos operacionais, a Res. 242 faz exatamente o oposto.


Palestina-Israel, resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU


É verdade que fala da “retirada de forças armadas israelenses dos territórios ocupados”, mas não especifica prazo para o início da retirada; não diz até onde Israel terá de retroceder, nem por quanto tempo poderá estender-se a retirada. Nem lista, por nome, os territórios dos quais Israel teria de retirar-se.

A Resolução clama por paz e “fronteiras seguras e reconhecidas” entre os protagonistas, mas não nomeia quem decide sobre a segurança e a localização das tais fronteiras. Nem uma palavra sobre as linhas do Armistício.

A resolução afirma a necessidade de uma “justa solução para o problema dos refugiados”, mas não nomeia que decide sobre a justiça da solução nem quem são esses refugiados. A palavra “palestinos” está completamente ausente; e não há referência à aplicabilidade das Convenções de Genebra aos territórios ocupados.

Esse texto espantoso tem de ser visto sobre o pano de funda das decisões tomadas pelo gabinete israelense nos dias 18-19 de junho, logo depois do fim das hostilidades.

Em forma resumida, o gabinete israelense firmou consenso sobre os seguintes pontos:

(1) retirada, só sob condições de acordos de paz;

(2) tratados de paz com Egito e Síria, “consideradas” as fronteiras internacionais e as necessidades da segurança de Israel;

(3) anexação da Faixa de Gaza; e

(4) o Rio Jordão como “fronteira de segurança” de Israel, o que implica controle sobre a Cisjordânia.

Ninguém precisa ser especialista em decifração de códigos secretos para ver que a Resolução 242 está em perfeita harmonia com essas especificações – melhor dizendo, instruções – do Gabinete israelense.

O foco nos tratados de paz com Egito e Síria com exclusão da Jordânia é, claro, planejado para separar esses dois países – Síria e Egito – do problema palestino e isolar ambos, os palestinos e a Jordânia.

Dia 28/6/1967, dez dias depois dessa reunião do Gabinete, Israel revelou suas verdadeiras intenções, anexando as 2,5 milhas quadradas de Jerusalém Leste, e mais 22,5 milhas quadradas de território adjacente da Cisjordânia, com uma configuração territorial obscena logo ao norte, em Ramallah.

A Res. 242 foi vitória diplomática e política israelense não menos importante que a vitória no campo de batalha. Mas só foi possível por causa do presidente Lyndon B. Johnson. O que realmente motivou LBJ permanece como objeto e campo de estudos para todos os centros de estudos palestinos. Como senador em 1956, Johnson havia-se oposto fortemente à decisão de Eisenhower de forçar Israel a restaurar o status quo ante e a devolver seus “territórios obtidos mediante guerra”.

Depois da guerra de 1967, o ministro do Exterior de Israel, Abba Eban, trabalhou muito próximo do círculo mais íntimo de LBJ, inclusive do embaixador dos EUA na ONU Arthur Goldberg. (Como membro de uma delegação iraquiana pré-Sadam à Assembleia Geral da ONU logo após a guerra, tive de ouvir Eban tecer sua rede de falsidades, mas também tive a chance de retrucar).

Eban revela em suas memórias que insistiu com seus contrapartes norte-americanos para que “erradicassem” da mente até o conceito de “armistício” e para que ligassem a retirada de Israel das atuais linhas de cessar-fogo a “negociações nas quais os limites seriam fixados por acordos.”

Significa que o ponto de partida das negociações seriam os mais distantes buracos aos quais a Israel blindada tivesse chegado em território árabe. Também significa que Israel poderia – como de fato pôde – usar todo o peso de suas ocupações e sua superioridade militar para ditar, a hora, o ritmo, a sequência e a extensão de sua retirada.

O “regime” estabelecido pela Res. 242 foi consentido, se não estimulado, por sucessivos governo dos EUA desde Johnson. A opacidade e a permissividade da Resolução permitiu a política da colonização (chamada “de assentamento”) que prossegue até esse exato instante. Aquele regime enviou Sadat a Jerusalém e Arafat, a Oslo.

A guerra de 1967 assestou o golpe de misericórdia ao panarabismo secular, que já estava em agonia terminal.

Mas catapultou o movimento palestino de guerrilhas para as linhas de frente, porque ele simbolizava a resistência de todo o mundo árabe, depois da humilhante derrota dos exércitos árabes.

Mas o impacto mais profundo e potencialmente mais catastrófica da guerra, contudo, está na inspiração que deu ao messianismo neossionista fundamentalista religioso, e na criação, por ele, de condições que levaram à disputa pelos locais sagrados de Jerusalém, entre jihadistas judeus e evangélicos cristãos, de um lado; e jihadistas muçulmanos, de outro.


O roubo das terras palestinas de 1946 a 2000

4.

Quando se olha a cena palestina hoje, vê-se um povo pendurado pelas pontas das unhas às ruínas de sua terra ancestral.

Nessa situação de dificuldade extrema, a absoluta prioridade dos palestinos deveria ser, é claro, cerrar fileiras, ombro a ombro.

Por isso a rixa Fatah/Hamas é tão absolutamente escandalosa. Precisa-se dos dois punhos, quando a luta é de sobrevivência. Cabe culpa aos dois lados. Os dois lados devem ser instados, incansavelmente, sem parar, a se reconciliar.

Claro que o simples ato de reconciliação entre eles será atacado, por Netanyahu, como ato de guerra. Mas não há dúvidas de que Israel sabe que a intrarreconciliação palestina é indispensável para qualquer paz palestinos-Israel.

A distância que separa Fatah e Hamas no quesito forma de luta é muito grande. Abbas está comprometido com a não violência. Não é compromisso filosófico: adepto da violência em seus dias de guerrilheiro, Abbas há muito tempo absorve o custo e as consequências da violência. Não é coincidência que tenha sido o primeiro dos líderes do Fatah a propor um diálogo com interlocutores israelenses sensíveis.

O compromisso de Abbas com a não violência é estratégia, não tática. Tenho certeza disso, depois de ouvi-lo e aos três que o antecederam: Arafat, Shuqairi e Haj Amin.

Em vários sentidos, Abbas é figura trágica. É líder guerrilheiro, convertido em “colaboracionista”. Todas as noites suas forças de segurança recolhem-se aos alojamentos, enquanto comandos israelenses circulam livremente pelos Kasbahs, pelos campos de refugiados e por vilas da Cisjordânia, à caça de jovens militantes. É preço terrível a pagar, por uma posição moral.

Por quanto tempo Abbas pode manter sua política sem qualquer avanço real rumo à paz? Por quanto tempo os palestinos acompanharão sua liderança?

Mesmo assim, não se pode esquecer que o movimento “Boicote, Desinvestimento, Sanções” (BDS) jamais teria avançado tanto quanto avançou, sem Abbas.

Por maior que seja a distância que separa Abbas e Hamas na questão da luta armada, não é distância infranqueável. Há sinais de pragmatismo na liderança do Hamas. E, se pensa teologicamente, pode também conceber saída teológica estratégica de seu declarado compromisso com a luta armada.

Em todos os casos, o compromisso de Abbas com a não violência não impede a desobediência civil. Esse pode ser o campo de encontro, depois que se estabelecer a dinâmica da reconciliação, e chegar o tempo da desobediência civil.

Se a disputa Fatah/Hamas é perigosa, em detrimento da causa palestina, o desacordo quanto ao objetivo político também o é. Não é segredo que a questão dois-estados/um-estado é tema de grande debate, não só no campo palestino como também num círculo muito mais amplo de aliados e apoiadores.

Como muitos de vocês sabem, são sou advogado eterno da divisão da Palestina, vale dizer, da solução “Dois Estados”. De fato, abracei esse lado da disputa já bem tarde. Aconteceu em 1978, em artigo publicado em Foreign Affairs, intitulado “Pensando o impensável” [orig. “Thinking the Unthinkable: A Sovereign Palestinian State”].

Continuo adepto de “Dois Estados” e explico por quê: a solução Dois Estados tem apoio global – com exceção, talvez, dos Estados Federados da Micronésia. Seria leviano desperdiçar esse patrimônio inestimável.

Já tentamos o modelo “um estado” durante os 30 anos do Mandato britânico, e sabemos o que acontece, ainda que o equilíbrio de poder tenha pendido, de início, massivamente a favor dos palestinos.

Hoje, o equilíbrio de poder está esmagadoramente do lado oposto. Israel é a superpotência do Leste [orig. Mashriq] árabe, graças à podridão do sistema dos estados árabes e suas elites no poder. Em contexto de solução um-estado, Israel teria o álibi ideal para remover quaisquer impedimentos que restem aos “assentamentos”. Num piscar de olhos, os palestinos teriam sorte se conservassem canteiros de terra para plantar cebolas no quintal e para enterrar os mortos, logo ao lado.

A Declaração de Independência de Israel, de 1948, promete garantir “completa igualdade de direitos sociais e políticos a todos os habitantes, sem diferenças de religião, raça ou sexo.”

Agora, Netanyahu vive a insistir na exigência de que se reconheça o caráter judeu de Israel, exigência absoluta para qualquer acordo de paz.

Dos 37 signatários da Declaração de Independência de Israel de 1948, só um nasceu na Palestina. Todos os demais vieram, a maioria, da Polônia e do Império Russo: de Plonsk, Poltava & Pinsk, de Lodz e Kaunas. Esses homens eram de esquerda ou do centro, mas não viajaram até a Palestina para, lá chegados, dividir a casa nova com outros moradores.

Quando Netanyahu fala de um estado judeu, fala em nome de um vasta e crescente eleitorado nacionalista fundamentalista de direita – que racha a sociedade israelense judaica pelo meio, de alto a baixo.

Hoje, a divisão da população de judeus em Israel já não se dá entre Esquerda e Direita, mas entre secularistas e religiosos. Muitos secularistas são liberais e pós-sionistas, mas não estão em crescimento.

O que está em crescimento é um movimento de colonos neo-sionista messiânico da direita religiosa, aliado ao evangelismo cristão norte-americano apocalíptico, incendiado em 1967 pelo furor da conquista de toda a Eretz Israel e pela volta do “Monte do Templo” à posse militar dos judeus.

Essa coalizão considera os palestinos canaanitas, cuja desgraça está biblicamente predestinada. Não vê com olhos muito mais benevolentes os israelenses judeus seculares. Em Israel já não há consenso sobre quem é judeu. Talvez possam pedir a Bibi que forneça uma definição de “judeu”.

Muitos proponentes de BDS são defensores de um-estado, interessados no sucesso das sanções contra a África do Sul do apartheid, mas entre o início das sanções contra a África do Sul no início dos anos 1960s e a eleição de Mandela em 1994 passaram-se 30 anos. O tempo não corre a favor dos palestinos num contexto de um-estado, apesar do fator demográfico.

Não sou contrário ao movimento BDS. Quero que tenha sucesso. Para que tenha sucesso, precisa dos judeus pós-sionistas e dos sionistas liberais. Mas deslegitimem a ocupação, que suas chances aumentam. Delegitimar a própria Israel lhes custará a maioria dos seus aliados judeus e muitas das capitais aliadas em todo o mundo.

Organizemos duas campanhas BDS: BDS-1, pelo fim da ocupação; BDS-2, para implementar a promessa de Israel aos seus cidadãos árabes na Declaração de Independência de Israel – nessa sequência.

Abraçar a própria identidade nacional numa era de globalização é fenômeno global ao qual se assiste na divisão de estados e em movimentos de devolução, em todo o mundo. Os pregadores da solução “um-estado” caminham contra essa tendência.

É imperativo que haja um estado palestino. Os palestinos têm de preservar o laço que os une ao que resta de sua terra ancestral. Precisam de um cordão umbilical que os conecte às lembranças coletivas de pais e avós.

Precisam de uma tribuna da qual falar por eles e pelos deles que restarão da diáspora deles. Precisam transferir sua herança aos netos e bisnetos. Precisam de um ponto sob o sol de Deus, onde não sejam fantasmas estrangeiros ou sem estado, nem sejam cidadãos de segunda classe.
Ain Yabrud, Palestina 1937
Ain Yabrud, Palestina 1937

5. 

O estado lastimável em que está a “Nação Árabe” pode ser aferido pelo fato de que o futuro da Palestina depende hoje mais dos “desejos e preconceitos” de Benjamin Ben Zion Nathan Netanyahu, que de qualquer dos governantes das orgulhosas capitais árabes, na Damasco Umayyad, na Bagdá abássida, na Cairo ayyubida ou na Riad wahhabista.

Mesmo assim, a atual conversa tripartite entre Netanyahu, Kerry e Abbas é, na realidade, apenas uma fachada para encobrir a maratona de luta-livre em curso entre Bibi e Obama, já há cinco anos.

Tenho ouvido atentamente a conversa de Bibi. O modelão ideológico foi forjado e incorporado dos ensinamentos do avô dele, rabino Nathan e do pai dele, professor Ben Zion.

O rabino Nathan, contemporâneo de Herzl, foi Sionista Nacional Religioso (espécime raro naquele tempo).

Foi ardente seguidor de Vladimir Jabotinsky, fundador do Movimento Sionista Revisionista, assim denominado porque, no início dos anos 1920s, queria “revisar” a estratégia gradualista de Chaim Weizmann e Ben Gurion.

JABOTINSKY insistia em que se afirmasse, sem meias medidas e sem meias palavras, que o objetivo era o Lar Nacional Judeu – um estado judeu – pelo meio do qual corre o Rio Jordão, não um pedaço disso, com o Jordão numa das fronteiras.

Esse objetivo deveria ser alcançado no menor tempo possível, por imigração massiva, protegida por uma “Cortina de Ferro”, significando “estupenda força militar”. Ben Gurion referia-se rotineiramente a Jabotinsky como “Vladimir Hitler.”

O ardor de Bem Zion por Jabotinsky não era menos intenso que o de Nathan. Uniu-se ao Partido Revisionista aos 18 anos e mais tarde editou um diário revisionista, intitulado Jordan, pelo qual criticou incansavelmente Weizmann e Ben Gurion.

Ben Zion, pai de Bibi, acompanhou Jabotinsky aos EUA, onde se tornou seu secretário. Lá ficou por dez anos, espalhando a ideologia revisionista, mas retornou a Israel para atacar Begin por seu tratado de paz com o Egito.

Recentemente, pouco antes de morrer, Ben Zion disse a um jornal israelense que “corte a comida das cidades árabes, acabe com as escolas, a energia elétrica e tudo mais, e os árabes não conseguirão existir e fugirão para bem longe daqui.”

Biógrafos israelenses de Bibi contam que Ben Zion dava aulas aos filhos de história e judaísmo, e que os filhos manifestavam ao pai “santa reverência”. Menino, Bibi seguidamente queria discutir “as duas margens do Jordão”.

Se o avô e o pai foram influências ideológicas, o personagem modelo da vida de Bibi foi seu irmão mais velho, Jonathan, herói de Entebbe, onde foi morto em ação. A insolência de Bibi vem daí.

A morte de Jonathan traumatizou pai e filho. Em homenagem a ele, criaram o Instituto Jonathan em Jerusalém, dedicado ao estudo do “terrorismo internacional”.

Bem adequadamente, uma das conferências desse Instituto ficou a cargo do primeiro-ministro Menachem Begin, o qual, contudo, se absteve de compartilhar suas memórias sobre Deir Yasin, ou como que seu grupo terrorista, Irgun, introduziu no Oriente Médio a carta-bomba, o pacote-bomba, a bomba-barril, o mercado-bomba e o carro-bomba.

Para Bibi, os EUA são pátria mãe, como Israel. Viveu lá desde os sete anos: escola primária, ginásio, MIT, uma empresa de consultoria em Boston. Lá ganhou sotaque da Filadélfia e aprendeu o vocabulário do beisebol. Pelo menos três de seus tios emigraram para os EUA, onde se tornaram magnatas do aço e alumínio.

Depois da invasão de Israel ao Líbano em 1982, Yitzhak Shamir, então ministro do Exterior, mandou Bibi como attaché para a embaixada em Washington, com a missão de reparar a imagem de Israel.

Bibi foi sucesso instantâneo: estava em todos os jornais, endeusado pelas grandes organizações de judeus. Como embaixador à ONU de 1984 a1988, consolidou seu estrelato com o público pró-Israel nos EUA.

Em 1991, Shamir, então primeiro-ministro, fez Bibi seu vice-primeiro-ministro, fazendo-o salivar ainda, naquele seu apetite político himalaico. Em 1993 Bibi era líder do Likud e, em 1996, primeiro-ministro.

Interessante fonte de insights sobre as relações entre Washington e Telavive, são as memórias e autobiografias de presidentes e secretários de estado. O espaço dedicado ao conflito árabe-israelense nesses escritos cresceu enormemente nas últimas décadas. Curiosamente, até agora não se viu interesse em reunir essas informações às de outras fontes – mais um campo de estudo para centros de pesquisa palestinos.

Desde os dias de embaixada em Washington, Bibi teve contato, em cargos diferentes, com cinco presidentes dos EUA. Considera a arena política nos EUA legitimamente sua. Permanece convencido, até hoje, de que seus escritos sobre terrorismo convenceram o presidente Reagan a alterar a política dos EUA sobre o tema.

Vangloria-se de ter feito bem-sucedido lobby no Congresso para pôr fim às tentativas do secretário Baker, que queria abrir diálogo com a OLP. Explica que “Tudo que fiz foi forçá-lo (Baker) a mudar de política, aplicando-lhe um pouco de pressão diplomática. Esse é o nome do jogo…”

Na primeira visita aos EUA como primeiro-ministro, em 1996, Bibi falou ao Congresso e foi ovacionado pelos dois partidos. Um tio magnata que ele convidara a ouvi-lo disse a um jornal norte-americano que seu sobrinho poderia facilmente derrotar Bob Dole e Bill Clinton na eleição presidencial.

O presidente Clinton reclamou que, numa das visitas de Bibi à Casa Branca, o “pastor Jerry Falwell gritava na calçada, “reunindo uma multidão, que elogiava a resistência do governo de Israel contra a retirada em etapas dos Territórios Ocupados”. Clinton também reclamou que “agentes do Likud nos EUA uniram-se aos Republicanos nos EUA, para espalhar desconfianças contra a diplomacia [do EUA] para o Oriente Médio.” Clinton acreditava que “no fundo do coração”, Bibi “resistia contra o processo de paz.” Sua tática favorita era “obstruir”; quando desafiado, punha-se a gritar “insulto nacional”.

E entra Barak Obama. Bibi, nascido em 1949, é 12 anos mais velho. Quando Obama concorreu ao Senado, em 2003, Bibi já fora embaixador à ONU, líder do Likud, primeiro-ministro, ministro do Exterior e, então, era ministro interino das Finanças.

É provável que Obama só tenha começado a aparecer no radar político de Bibi depois do discurso de 2004 na Convenção Nacional dos Democratas. De onde saiu esse sujeito? E com esse nome?! É tentador especular se Bibi sentiu que Obama estivesse metendo o nariz em território ‘de Bibi’.

Não há tempo aqui para listar todos os vários rounds da queda-de-braço entre Obama-Bibi – congelamento dos ‘assentamentos’, ambições nucleares do Irã, as fronteiras de 1967, reconhecimento na ONU, acordo Hamas-Fatah. Alguns observadores entendem que Bibi “eclipsou” Obama. Pessoalmente, vejo um empate.

Senhoras e senhores,

Nos últimos cem anos, desde 1914, o sionismo andou montado às costas da Pax Britannica, depois da Pax Americana para estabelecer uma Pax Israeliana à custa do povo palestino. Por quanto tempo mais pode persistir na recusa a encarar o que foi feito aos palestinos?

Meu palpite é que Bibi concordará com o geral das propostas de Kerry, mas só porque tem já a intenção de brecar tudo. Bibi acredita que possa fazer sempre a mesma coisa. Vê-se como mais do que apenas primeiro-ministro de Israel. Em 2010 e 2012, o jornal Jerusalem Post apresentou-o no primeiro lugar da lista dos Judeus mais Influentes do Mundo.

Para Bibi, o Atlântico atravessa Eretz Israel. Bibi sabe que sobreviverá politicamente a Obama. Em Israel, uma vez primeiro-ministro, primeiro-ministro para sempre. Em menos de três anos, Obama será passado. Bibi sabe que, até lá, também pode derrotar Obama no Congresso. Com certeza tem mais votos nos dois partidos, que o atual inquilino do Salão Oval.

Todos os demais protagonistas estão comprometidos com uma solução pacífica. Kerry fala a voz do patrão, e Obama tem compreensão muito mais ampla da questão palestina que qualquer dos que o antecederam no cargo. O compromisso de Abbas com a paz é genuíno. Na idade em que está, a paz seria o coroamento de sua vida política. As dinastias do Golfo babam por uma solução na Palestina, que lhes permita concentrar-se no inimigo real: Teerã, panislamista e antimonarquista.

Bibi jamais dividirá Jerusalém. Ocupação e colonização (‘assentamentos’) continuadas continuarão a apertar a corda em torno de Jerusalém Leste, o que é receita garantida para catástrofe apocalíptica mais cedo ou mais tarde, contra os lugares sagrados dos muçulmanos na Cidade Antiga. Com levantes repetidos de fanatismo religioso dos dois lados, a estrada para o Armageddon começa em Jerusalém.

Eis por que, senhores e senhoras, Benjamin Ben Zion Ben Nathan Nethanyahu é o mais perigoso líder político em atividade no mundo, hoje.




[1] Sobre isso, há importante documento, traduzido em 2010: “AOS CIDADÃOS NORTE-AMERICANOS. Como os árabes veem os judeus. Carta de SM, Rei Abdullah ibn Hussein”, novembro de 1947, publicado na revista American Prospect, Nova York, EUA. A tradução pode ser lida em http://grupobeatrice.blogspot.com.br/2010/06/aos-cidadaos-norte-americanos.html [NTs].

[2] Sobre essa organização terrorista israelense, ver http://global.britannica.com/EBchecked/topic/565756/Stern-Gang





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